quarta-feira, 17 de julho de 2013

Wagner, Visconti, Parsifal, Rocco, redenção e perdição

No drama musical Parsifal, de Wagner, Kundry oscila entre Titurel e Klingsor, entre o ascetismo, a pureza dos cavaleiros do Graal, e a atração de cavaleiros andantes à perdição do Jardim das Delícias.
Esta temática não deixa de ser ressuscitada no drama neo-realista de Luchino Visconti Rocco e seus irmãos [Rocco e i sui fratelli –ITA, 1960], no qual a prostituta Nadia (Annie Girardot), depois de arrastar à perdição Simone (Renato Salvatore), busca junto ao irmão deste, o “tolo inocente” Rocco (Alain Delon), o caminho para a redenção de sua alma – a oscilação entre o caminho “fácil” do hedonismo ou o difícil da “redenção”-.
Claro que existe uma diferença de premissas entre Visconti e Wagner, sobretudo pelas épocas em que viveram, as artes que cultivaram (se bem que, se Wagner tivesse chegado a ser contemporâneo dos experimentos dos Lumière, com sua obsessão pela obra de arte total, sem dúvida se teria rendido, como sugeriu o cineasta alemão Syberberg, aos encantos do cinema, e Visconti, por seu turno, tenha utilizado peças de Wagner - principalmente do Tannhäuser e de Tristão e Isolda- como trilha sonora de seu filme sobre o mecenas deste,Ludwig), a respectiva formação etc.
Enquanto Wagner escreve seus libretos e compõe sua música em busca do Sagrado, Visconti, pelo contrário, compõe seu filme, acompanhado pela trilha sonora de Nino Rota (que, mais tarde, ao compor a trilha sonora de Morte sobre o Nilo, prestaria uma homenagem ao Mago de Bayreuth, com direito, inclusive, a uma citação daCavalgada das Valquírias), olhando para a realidade a ele contemporânea, das desigualdades existentes entre as regiões Sul e Norte da Itália, das fragilidades do ser humano comum buscando sobreviver num mundo onde a regra principal é não ser esmagado por aqueles que disputam com ele o direito de ocuparem tal ou qual espaço.
A questão das divisões sociais, fortíssima na película de Visconti, está ausente no canto de cisne de Wagner, embora não o estejam as questões do hedonismo em face do ascetismo, do egoísmo em face do altruísmo, como um problema que vem a transcender a contingência da realidade capitalista, como algo que aflige a humanidade desde tempos imemoriais.
Embora unidos pela mesma temática - o dualismo "perdição/redenção","hedonismo/ascetismo" -, Wagner e Visconti, aqui, não deixam de evocar a imagem central da “Escola de Atenas”, de Rafael Sanzio: Wagner, tal qual Platão, aponta para os céus, enquanto Visconti, tal qual Aristóteles, olha para o chão.
O dualismo que os une, ainda, não deixa de evocar a regra da composição dos enredos na tragédia grega: a perdição seria o fruto de uma transgressão arrogante, de uma falta de cuidado nascida de um excesso de autoconfiança, enquanto a redenção proviria da autorrenúncia, da autonegação.
Também não deixa de ser um dado presente no pensamento budista, da Dor como nascida do Desejo e eliminada justamente com a eliminação do Desejo.
E a eliminação do Desejo trazida não como a respectiva satisfação, mas sim como a efetiva renúncia à satisfação.
Renúncia, aqui, tida como uma manifestação irretratável, com efeitos definitivos, não como uma mera abstenção passageira.
Embora o budismo esteja ausente na formação de Visconti, no testamento lítero-musical de Wagner ele vem a ser bem presente, sendo certo que estava nos planos do Mago de Bayreuth escrever um drama musical – do qual restaram somente os esboços – sobre a vida de Siddartha Gautama, o Buddha, ao qual seria dado o título O vencedor.
Parsifal redime a si próprio e também ao filho de Titurel quando se identifica com o sofrimento deste e renuncia aos prazeres que lhe oferece Kundry (a serviço de Klingsor) e, tendo recuperado a lança que ferira o peito do Redentor, ao ser atacado no caminho de volta a Monsalvat, prefere ser ferido a utilizá-la e deixar que seja conspurcada por sangue impuro.
Por outro lado, Kundry, ao contrário do que seria de se esperar a partir de uma moral baseada na “recompensa plena para o Bem, castigo para o Mal”, vem, antes, a ser redimida, evocando, num certo sentido, a passagem bíblica em que o Redentor salva Maria de Magdala.
Com a mesma lança com que Klingsor ferira o peito de Amfortas (que se tornara vulnerável por haver sucumbido à sedução de Kundry), Parsifal vem a fechar-lhe a ferida, determinando, outrossim, que não mais o Graal fique coberto.
Amfortas, pois, também vem a terminar os seus sofrimentos, sem ser, pois, “castigado”.
Por outro lado, a distância da Divindade em face da Humanidade vem a ser desfeita; não se torna mais algo desastroso para esta última, uma vez que a causa que a separava d'Aquela, afinal, desapareceu: a busca de auto-afirmação veio a ser substituída pela compreensão de que, com a eliminação do Desejo, eliminar-se-ia a Dor.
Em suma, a renúncia, aqui, vem a ser o caminho do Humano em direção ao Divino, é o caminho, pois, da superação das dificuldades, e a ideia do perdão faz-se presente.
Rocco, outrossim, faz várias renúncias, embora todas elas tenham um resultado desastroso: pacífico por índole, torna-se boxeador para sustentar a família - que se mudara do Mezzogiorno para Milão, onde a mãe, a viúva Rosaria (Katina Paxinou), esperava obter uma melhoria no nível de vida para si e para os filhos -, já que seu irmão Simone, que exercia tal profissão, vem a envolver-se com Nadia e entra em decadência.
Quando Nadia abandona Simone, Rocco, ao retornar do serviço militar, vem a envolver-se com ela, conduzindo-a, inclusive, a abandonar a antiga profissão, até o momento em que o irmão resolve retomá-la à força:
“Rocco é a encarnação dos ideais da mãe e do pai ausente, buscando sempre manter todos em comunhão, junto com a mãe, no espírito da migração; tentando fazer com que a família realize a missão pela qual se pôs na estrada. É assim que se ajusta ao mundo urbano, movendo-se nas diferentes atividades, inclusive no pugilismo, a despeito de não gostar. Para garantir o clima da comunidade, engaja-se na sociedade, no labirinto turbulento. E de repente se apaixona por Nadia, que descobre nele o amor e a amizade, a transparência e a felicidade. Rocco tem algo de santo. Mantém uma atividade compreensiva e empenha-se nela, concentrada na família, a comunidade originária enraizada no cristianismo primordial. Tanto é assim que se deixa brutalizar por Simone, para salvá-lo, inclusive fazendo com que Nadia volte para ele, para salvá-lo; inclusive chorando desesperado com ele após o assassinato de Nadia, para salvá-lo” [IANNI, Octavio. Uma longa viagem. Tempo Social. São Paulo, v. 16, n. 1, p. 155, jun 2004]
Vendo na obsessão de Simone por Nadia a origem da degradação do irmão, Rocco a ela renuncia, julgando que, com isto, poderá evitar o processo de dissolução da unidade familiar: parece-lhe que, atendido o desejo de Simone e aplacada a respectiva obsessão, tudo se modificaria para melhor.
 O resultado é, antes, o acirramento da violência e da degradação de Simone e o retorno de Nadia à prostituição, culminando em seu assassinato por parte do ciumento amante.
É como se Klingsor, mesmo não conseguindo apoderar-se da alma de Parsifal, atraísse Kundry e Amfortas definitivamente para si e, com a destruição do Jardim das Delícias, marcada por uma transfiguração do tema com que se manifestam as raparigas-flores quando Parsifal derrota os cavaleiros enviados por Klingsor, o puro inocente perdesse o caminho de volta para Monsalvat.
Quer dizer: ao contrário de Kundry, Nadia vem a ser "castigada" por aquele cuja perdição causou, como se o Mal, tanto em relação a ela quanto em relação a Simone, fosse uma inclinação inexorável.
Praticamente sugere o modo como Syberberg terminou sua adaptação do Parsifal, em que após a descoberta do Graal, pela última vez, em que o tolo inocente tornado sábio pela compaixão - e, na visão do diretor alemão, cindido em um ator e uma atriz adolescentes - abençoa aos integrantes da confraria de Monsalvat, após o último acorde em la bemol maior, retorna a frase com que Kundry sucumbe à magia de Klingsor: "Schlafe! Schlafe! Ich muss!"
Quer dizer: em tal visão, o destino inexorável da humanidade é, por mais que aspire à superação do "Mal", é ficar em um pêndulo entre este e o "Bem", e disto nem mesmo os mais piedosos podem considerar-se livres. 
Como se lê no texto da "Missa de Requiem", até os justos se sentem apreensivos diante da perspectiva do Juízo Final, porque são "justos" em razão de critérios puramente humanos, que podem não coincidir necessariamente com os critérios "divinos".
Num certo sentido, a renúncia, em Rocco, adquire quase que um sentido de “auto-mutilação”, como a que Klingsor perpetrou, em sua (frustrada) aspiração pela pureza, e que o tornou, por isto mesmo, imune à magia de Kundry, embora Rocco mesmo seja um puro como Parsifal: é por uma violência contra si próprio que Rocco vem a precipitar a degradação que pretendia impedir.
Ciro, irmão mais jovem, que se vem a integrar ao universo dos trabalhadores no setor industrial em Milão, verificando os fracassos de Rocco e o ponto a que chegou a degradação de Simone, entrega este à polícia pelo homicídio cometido, concluindo, em conversa com o mais novo dentre eles, que a excessiva santidade de Rocco, perdoando a tudo e a todos, não seria para este mundo. 
Ciro é um homem que, integrado na força de trabalho industrial, afirma os valores da sociedade em que está inserido e procura contribuir para o que se entende que seja o "progresso" desta mesma sociedade, para a contínua possibilidade de satisfação das necessidades dos indivíduos que a integram. 
A ideia que o move não é a de “redenção”, mas sim a de identificação de “seu lugar no mundo”, a de “pertinência a um grupo social”: os méritos e deméritos do ser humano vêm a ser aferidos a partir do meio em que vive e dos valores dominantes nesse mesmo meio, justamente porque não é um bruto ou um deus, mas sim um zoon politikon, na acepção própria de Aristóteles. 
Daí, não se o pode ter como alguém norteado pela "renúncia", mas, pelo contrário, pela afirmação da vontade de viver, sobrevivendo em um meio no qual a qualificação do "homem honesto e bem sucedido" passa por uma ética do trabalho; é uma necessidade de sobreviver e ocupar espaços cujo fundamento sequer pode ser colocado em discussão.
Resta, evidentemente, saber até que ponto a “pertinência a um grupo”, ou melhor, a “construção da identidade a partir da pertinência a um grupo” não se irá confundir com a dissolução em meio ao rebanho, a conversão em mais uma dentre as cabeças do rebanho, a esperar que o “pastor” o guie para onde a respectiva vontade apontar, ainda que seja para o abismo.
No universo de Dostoievsky, Parsifal estaria mais próximo do Aliocha de Os irmãos Karamazov, enquanto Rocco estaria mais próximo do Príncipe Michkin de O idiota, como foi observado em dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal de Minas Gerais:
Rocco e seus irmãos (Rocco e i suoi fratelli, 1960) conta a  saga de uma viúva, Rosaria Parondi (Katina Paxinou) e seus cinco filhos, Rocco (Alain Delon), Simone (Renato Salvatori), Vincenzo (Spiros Focás), Ciro (Max Cartier) e Luca (Rocco Vidolazzi), que saem da Lucania, na Sicília, para viver em Milão, uma grande cidade industrial, em busca de novas oportunidades de trabalho. Cada um tenta seguir o seu caminho, mas a degradação da família é contaminada por valores e costumes de uma sociedade agressiva e rude. Inspirado em obras literárias, o filme une influências de Thomas Mann, que recontou a história de José, filho de Jacó, em José e seus irmãos; e de Dostoievski, em que as características do personagem principal, Rocco, aproximam-se das inocências do príncipe Mishkin de O Idiota, do escritor russo” [CARNEIRO, Ana Luíza Cavalcanti. Uma tradução cinematográfica: Noites brancas, de Luchino Visconti. Belo Horizonte: Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, 2009, p. 22 (dissertação de mestrado)].
Aliocha consegue, como Parsifal, salvar-se e, num certo sentido, vem a ser uma espécie de agente catalisador da redenção de seu irmão Dimitri, diversamente do que ocorre com Rocco, que é impotente para impedir a degradação de Simone e a destruição de Nadia.
De qualquer sorte, nem Parsifal nem Rocco podem ser considerados compatíveis com este mundo; são santos, são almas excessivamente elevadas para seres que se movem a partir de interesses mais elementares e que sequer colocam em questão a vida que eventualmente levem, até porque estes seres comuns, se viessem a colocar em questão, provavelmente, perderiam todos os elos que formam os grupos a que pertencem.
Claro, são personagens de ficção, mas nem por isto vão deixar de prestar-se a auxiliar a compreensão do mundo real.
Este é o mundo no qual a necessidade de sobreviver e de ocupar espaços não tem qualquer compatibilidade com a santidade.
A própria condição de um Parsifal cuja família é rarefeita (e, no entanto, passa a ser familiar de toda a humanidade) e de um Rocco cuja família é imensa, porém, com os laços tendentes a se esgarçarem (mesmo com todo o empenho da matriarca, e do próprio Rocco, em sentido contrário), a partir dos próprios embates com o mundo, rende ensejo a reflexão, acerca do papel que podem desempenhar os valores que transcendam o egoísmo humano na vida em sociedade.
Se a santidade, tanto para Visconti quanto para Wagner, não teria lugar neste mundo, compreende-se, inclusive, como não se pode tratar como farisaica a mensagem do testamento musical deste último, argumentando-se com o seu modo de proceder: afinal, vivia neste mundo, embora, é claro, possa-se considerar que outra linha de conduta dele fosse exigível. 
Quanto ao “farisaísmo”, cabe notar, com Derrick Everett, que, na fonte original, Parsifal vem a ser repreendido por peregrinos por não haver estado presente em uma igreja durante anos e estar armado em plena Sexta-Feira Santa, e é enviado a um ermitão que os peregrinos haviam acabado de visitar [ http://www.monsalvat.no/friday.htm ].
A respeitabilidade determinada pela observância da liturgia, predominância da forma sobre a substância, a sobrevalorização do estereótipo, embora a realidade, mesmo, o transcenda está trazida na passagem acima referida.
Por sinal, a mesma questão da respeitabilidade não deixa de ser colocada na película de Visconti, do que faz com que um indivíduo mereça ser tido como “respeitável”, e, sem sombra de dúvidas, o que mais se aproxima desta qualificação é Ciro:
Rocco e suoi Fratelli conclui que não há utopia para além da sociedade industrial e que naquele momento era ela que forjava  os  destinos.  No  futuro  talvez  houvesse  uma possibilidade  da devolução da terra ao mais jovem dos Parondi – ainda uma criança – quando a  modernização  houvesse  completado  o  seu  trágico  e inexorável  curso.  A lucidez de Rosária Parondi está na sua trágica consciência de que ela era um ser  estranho  à  grande  cidade,  mas  tal  como  seu  marido,  poderia  não sobreviver à pobreza se continuasse a viver no campo. Feito em capítulos, a forma de Rocco traria esta sobreposição de ‘tempos sociais’ de cada um dos irmãos  Parondi,  até  concluir  que  o  filho  que  se  adequava  à  vida  urbana  e proletária constituía o único personagem não trágico. Houve na crítica quem sugerisse que por isso o filme devesse chamar Ciro e seus irmãos, mas houve também  quem  notasse,  como  Zambetti  (Cineforum,  1966),  que  este  era  o personagem menos convincente de Visconti: no mínimo, uma expressão de que o centro do conflito na vida italiana daqueles anos não era carregado pelo bem  inserido  operário  da  Alfa  Romeo,  mas  pelo  deslocado  e  romântico migrante,  em  desacordo  com  certos  valores  que  ficaram  para  trás,  mas também  com  os  elementos  do  individualismo  moderno  que  não  chega  a compreender. Rocco seria o personagem tipo do processo da modernização que,  em  alguns  momentos  e  para  um  sujeito  comum,  assume  um  caráter trágico, de destino implacável. Para os que tinham clareza da possibilidade de mudar  o  próprio  destino,  como  Ciro,  a  vida  se  desenhava  mediocremente limitada aos valores do consumo e da família. Uma forma que, desconfiava da validade dos velhos valores familistas da sociedade agrária mas, no mínimo, revelava também sincera desconfiança da ‘nova civilização’ que se delineava no horizonte” [TOLENTINO,Celia. O Fausto saudosista ou o rural no cinema brasileiro e italiano. http://www.pucsp.br/neils/downloads/v9_artigo_tolentino.pdf ].
Mas, como dito no texto acima, Ciro, o “respeitável”, o bem-sucedido empregado da Alfa Romeo – bem-sucedido, inclusive, porque se insere na condição de trabalhador subordinado, bem-comportado executor das ordens de quem tem o comando sobre o seu esforço físico e intelectual, e que, em função disto, obtém os meios aptos a possibilitarem o acesso ao que se destine a satisfazer às suas necessidades e às do que dele porventura dependam – não se apresenta com a dimensão trágica que o tornaria “interessante”, porque é justamente o que mais longe estaria do “santo”, sem, no entanto, se colocar na condição do desajustado, do homem que caiu nas malhas do Tentador: a “vida tranquila”, vida “com menores dificuldades” ou “sem dificuldades”, a conquista da “respeitabilidade”, para a família Parondi, pareceria uma espécie de Santo Graal a que somente se poderia chegar se não se enveredasse nem pela pureza de Rocco (ao contrário do que ocorre com Parsifal, para quem a pureza é precisamente o caminho para o Graal) nem pela marginalidade de Simone.
Mas não é ao ser humano que transmite a mensagem, e sim à mensagem em si, que se dirige esta pequena reflexão, justamente porque o mérito da mensagem em si não vem a ser determinado pelo ser humano que a enuncia, mas pela ideia que nela é expressa, se válida ou inválida, tomando tal ou qual referencial ético, se verdadeira ou falsa, a partir de sua correspondência com os dados que se manifestassem na realidade, a sempre recordada “adequação do intelecto à coisa” presente na contribuição da Escolástica de raiz aristotélica.
Por outras palavras, as biografias tanto de Richard Wagner quanto de Lucchino Visconti estão muito longe de ser o que realmente importa para o presente debate, mas sim os problemas comuns em ambas as obras levantados, bem como os pontos particulares a cada uma delas.
A questão da possibilidade de outro mundo, não baseado no egoísmo, integra a maior parte das utopias, embora haja, também, utopias que enaltecem o egoísmo (a visão de um von Mises e de um Hayek, por exemplo), com o que a caracterização do “egoísmo” como um “Mal”, como algo a ser evitado, ou como um “Bem”, como algo a ser buscado, traduz uma preocupação de caráter intemporal, ainda não respondida, mas que, nem por isto, deve deixar de ser colocada.
A indagação do que seja "perdição", como o estado a que seria vitando chegar, por prejudicial, e do que seja "redenção", como o estado a que se almejaria chegar, como melhor do que aquele em que nos encontramos, do que as caracterize, objetivamente, também se coloca em caráter intemporal.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

O simbolismo do ouro no Anel do Nibelungo

Uma interpretação simplista que se procura dar ao Anel do Nibelungo, exatamente em função do ouro, para se identificar em Wagner o pai da Alemanha nazista, é o de uma metáfora a respeito do judaísmo.

Isto porque o ouro, no imaginário popular, pode ser associado à figura do judeu que empresta dinheiro a juros e não recua, de modo algum, em aproveitar-se da necessidade alheia para tiranizar o próximo.

Uma outra interpretação, bastante próxima desta, é a que localiza no ouro uma alegoria da competição capitalista.

Outra, ainda, descendente da anterior, estabelece analogia com a luta de classes, representando os deuses a classe dominante e os nibelungos e os gigantes a classe dominada.

Tais interpretações, embora perfeitamente sustentáveis e fundamentadas, não me parecem esgotar todo o simbolismo do ouro na Tetralogia.

É indubitável que o ouro está relacionado com a idéia de poder, e isto é explicitado pelas próprias filhas do Reno na primeira cena do Ciclo.

A vontade de obter o ouro, então, é a materialização da própria vontade de poder, de ter o comando sobre o mundo inteiro.

Neste caso, não é apenas do poder econômico que se ocupa o Ciclo, mas do poder em si mesmo: o poder do Estado sobre os súditos, do sacerdote sobre os fiéis, dos pais sobre os filhos etc.

Mas a vontade de poder, claramente, como afirmação total do indivíduo sobre o meio em que vive, pressupõe a renúncia a tudo o que represente dádiva desinteressada.

Daí por que somente quem renunciasse ao amor poderia subtraí-lo às filhas do Reno, assim como somente quem o devolvesse a elas sem nada esperar em troca poderia pôr fim à maldição que sobre ele pesava.

Observe-se que mais este dado a respeito do poder foi aproveitado por Wagner ao pôr na boca de Alberich: ambicionado por todos, não encontraria paz aquele que o obtivesse.

As formas de obtenção do ouro são exatamente os meios que marcam a luta pelo poder: uma dedicação total ao egoísmo, representado pela renúncia ao Amor, perpetrada tanto por Alberich quanto por Fasolt, a perfídia, de que lançam mão Alberich, Loge, Wotan, Mime e Hagen, e o assassinato, que é praticado por Fafner e por Hagen.

Até mesmo o famoso "abrir mão dos anéis para não perder os dedos" se acha presente no Ciclo: Wotan abre mão do anel pelo medo do fim dos deuses, com o que não seria válida a entrega que por ele fosse feita às filhas do Reno para escapar à maldição lançada por Alberich.

Veja-se que a sinceridade do amor de Siegfried por Brunhilde é atestada pela entrega a esta do anel feito do ouro do Reno, conseguido pelo herói após o combate com Fafner.

Sabemos que o amor de Brunhilde por Siegfried, ao início, é bem humano e egoístico, pois ela se recusa a entregar o anel às filhas do Reno mesmo avisada por Waltraute de que um tal gesto depende a própria sobrevivência dos deuses.

Quando tal amor se converte em renúncia, quando se converte em amor desinteressado, retira o fatídico anel do dedo do cadáver do Wälsung para que retorne ao lugar de onde veio.

Diga-se de passagem que o pagão Siegfried não deixa de fazer remissão a dois heróis cristãos do Ciclo do Graal: Lohengrin e Parsifal.

Lohengrin, ao partir, entrega a Elsa um anel para que se lembre daquele que veio em seu socorro quando injustamente acusada de ter matado seu irmão.

Devemos lembrar que que a partida de Lohengrin se dá justamente porque Elsa se mostrou incapaz de o amar sem exigir nada em troca, desejou-o egoisticamente, quis que a relação se mostrasse proveitosa para ela, em suma, não a encarou como uma doação, mas sim como um escambo ("dou desde que dês").

Parsifal, tal como Siegfried, é o tolo inocente, prestes a cair na armadilha de Klingsor, o feiticeiro eunuco, cujo maior desejo é o poder sobre todas as criaturas do universo, destronando o próprio Deus [HOLLINRAKE, 1986:13].

Diferente não é o desejo de Alberich, muito menos o do filho deste, Hagen, que prepara o filtro que embota a consciência e a memória de Siegfried.

A inocência, em Lohengrin, é personificada por Elsa, tanto no sentido jurídico, de ausência de culpa, quanto no sentido psicológico, de ausência de malícia, pois cai na armadilha que lhe prepara Ortrud, que lhe desperta o desejo de exigir a Lohengrin que decline os respectivos nome e linhagem.

O ouro que jaz no fundo do Reno é para as filhas deste fonte de luz, não de riqueza.

Fonte, pois, de energia, embora esta se venha a converter, à medida em que o ser humano vai superando os limites postos pela natureza, em si mesma, em fonte de poder.

Volta, aqui, a lenda de Faetonte, filho de Helios, que, pretendendo mostrar a Epafos (filho de Zeus e Io) a sua ascendência, tomou o carro do pai e, inebriado pelo poder que tal comando representava, quase destruiu o universo, não fosse a providencial mão de Zeus, que o fulminou.

Entra, aqui, a questão do real perigo de se entregar o poder, sem o anterior preparo para o seu exercício, isto é, da não banalização da capacidade de destruir inerente à condição de poder, algo que não se liga, necessariamente, ao preparo intelectual, mas muito ao emocional.

Nas concepções de inspiração oriental, o trilhar do caminho em direção ao Eterno implica, necessariamente, arrostar com todas as más tendências latentes no interior do próprio discípulo, como também com toda a velocidade adquirida pelas forças sinistras acumuladas pela comunidade ou nação de que faça parte [ROSO DE LUNA, 1921:71].

Outrossim, mesmo intérpretes materialistas teriam um manancial fértil para explorar, já que o Anel foi escrito em plena época da Revolução Industrial, quando o uso do vapor se mostrava responsável pela aceleração da produção e da circulação de mercadorias, com o que a possibilidade de manipular a energia do vapor traduzia a própria possibilidade de manipular a própria força de trabalho de outros seres humanos.

Daí poder-se-ia conceber a luta pelo ouro como a luta pela energia capaz de multiplicar a força do braço humano e, pois, da própria capacidade de trabalho daqueles que não fossem titulares dessa mesma energia.

O papel das Filhas do Reno em face do ouro, de outra parte, muito se assemelha ao das tribos indígenas no Brasil, que conviviam com metais e pedras preciosas sem, no entanto, atribuir-lhes o valor que os civilizados europeus e os seus vizinhos dos Andes diziam que tinham.

Quando muito, davam-lhe o valor de um brinquedo, de um enfeite ou de uma fonte de energia, mas jamais de uma fonte de poder.

A luta entre os nibelungos, os deuses, os gigantes e os homens em torno do ouro poderia também alegorizar a luta entre os europeus pelo que fora extraído das Américas.

Esta conclusão está longe de ser forçada: é que Wagner confessava aos Quatro Ventos a influência que Schopenhauer tivera sobre sua obra, e, embora este último negasse quaisquer preocupações políticas, nunca deixou de verberar a aventura colonial européia, lastreada que era esta num pressuposto errôneo de superioridade dos europeus a todo o resto da humanidade [CAMARGO, 2010].

Está o Ciclo constituído de Quatro Dramas, que poderiam bem ser análogos às Quatro Idades a que se referia Hesíodo n'Os Trabalhos e os dias, introduzindo outra acepção para o ouro: a Idade do Ouro ou a Infância, a Idade de Prata, ou Guerreira, a Idade do Cobre, ou dos Comerciantes, e a Idade do Ferro, ou do Abandono [ROSO DE LUNA, 1921:281].

O início do Ouro do Reno marca o fim da Idade de Ouro e o início da Idade de Prata: a tônica da primeira cena, que é a brincadeira inocente das Filhas do Reno, é substituída por um caleidoscópio de cenas de violência, a começar pelo furto do ouro por Alberich.

Seguem-se demonstrações de força dos gigantes e dos deuses, em luta pela deusa Freya, responsável pela colheita das maçãs de ouro, que têm a propriedade de garantir a eterna juventude aos que delas se alimentam - outro ouro, pois, que os imuniza aos efeitos da passagem do tempo -.

O digno representante da Idade de Cobre é Loge, que negocia com os gigantes o resgate de Freya e consegue lograr Alberich, para dele conseguir o ouro.

A passagem da Idade do Cobre para a Idade do Ferro dá-se quando Wotan abre mão do Anel, após a profecia da deusa Erda, a Terra, que lhe diz que somente aquele que desinteressadamente devolvesse o ouro às Filhas do Reno poderia anular a maldição de Alberich.

O ouro nas mãos de Fafner, as Filhas do Reno sem o ouro, Wotan usufruindo de um esplendor que sabe ser inútil, tais as características da Idade do Ferro que se verificam ao final de O Ouro do Reno.

Em a Walkiria e Siegfried, sem sombra de dúvidas, a tônica é o heroísmo, característico da Idade de Prata.

No Crepúsculo dos Deuses estamos diante do Pacto celebrado entre Siegfried, Gunther e Hagen, das perfídias deste último, das conspirações tão características da Idade do Cobre, até chegarmos ao abandono, à dissolução final da Idade do Ferro, com a morte de Siegfried e Gunther, a peroração de Brunnhilde, a inundação do Palácio dos Gibichungs pelo Reno, a morte de Hagen, reiniciando a Idade de Ouro ao cair o anel nas mãos das Filhas do Reno.

Neste caso, poderia ser também a gravitação dos personagens em torno do precioso metal uma expressão de uma nostalgia de uma Idade de Ouro que passou e cujo retorno depende de todas as vicissitudes do ciclo de necessidades?

Um ciclo no qual tudo é dor, enquanto se for escravo do desejo, e que somente terminará se se renunciar ao próprio desejo.

Um ciclo que, aliás, não deixa de estar presente também na idéia do Eterno Retorno, decorrência do princípio da exploração da energia, tão bem explorada por NIETZSCHE [HOLLINRAKE, 1986:23; MANN, 1975:40].

Outra questão interessante, merecedora de maior aprofundamento, é a relação do ouro com o sol.

Tal como este, o ouro é fonte de iluminação do fundo das águas do Reno.

O sol é, por outro lado, o Astro-Rei, não só por ser o centro do nosso Universo - descoberta, aliás, posterior aos cultos solares - como por emanar energia que catalisa as funções vitais.

Como Astro-Rei, ocupou o sol em várias teogonias (dentre elas a egípcia) o papel de Deus dos Deuses.

Todas as personagens da Tetralogia gravitam em redor do ouro como os planetas gravitam em redor do Sol, e têm as respectivas órbitas mais rápidas, quanto mais próximos dele, mesmo na Walkiria, onde o ouro está aparentemente ausente da trama, mas subjaz ao engendramento das Walkirias e Wälsungen.

As maçãs de ouro, que somente Freya, a Deusa do Amor, pode colher, são as responsáveis pela eterna juventude dos demais Deuses, inclusive Wotan, livrando-os do destino dos mortais.

E, por outro lado, a cor do ouro aparece neste drama para caracterizar os descendentes de Wotan: tanto os Wälsungen quanto as Walkirias são loiros, e daí muitos inferiram uma mensagem de superioridade dos loiros arianos sobre as demais raças, olvidando que a própria raça dos deuses, no Anel, está fadada ao perecimento, para que uma nova ordem se instaure, não mais baseada na violência e no combate.

A proximidade excessiva com o Sol implicaria o escaldamento do planeta (e Ícaro se aproximou demais do Sol, na mitologia grega), tal como a proximidade excessiva do ouro vem a acarretar a destruição do temerário e a aproximação dos mortais aos deuses, diretamente, viria a fulminá-los (o mito grego de Sêmele ilustra esta percepção).

Na própria anatomia de Wotan, o sol vem a ser representado por seu olho sadio: ao conquistar Fricka e obter o segredo das Runas que lhe permitiria governar o mundo, perdera o olho correspondente à lua, à semelhança do Deus falcão egípcio, Horus.

As cavernas tenebrosas de Nibelheim, onde viviam os nibelungos, onde o sol jamais entrava e não havia lugar para a alegria solar do mundo das águas, somente para a dor e a angústia, equiparar-se-iam aos monumentos megalíticos que separavam o Mundo dos Vivos do Mundo dos Mortos, impedindo que estes viessem, de acordo com a tradição, a praticar ou inspirar más ações [ELIADE, 1993: p. 177].

Em termos musicais, é sumamente interessante que o tema pelo qual a aparição do Ouro é representada vem a ser empregado tanto como prelúdio de uma explosão de alegria das Filhas do Reno como no irritado comentário de Wotan às lamentações das ninfas pela perda do ouro. Ele também aparece quando Mime prepara a sua fatal beberagem, destinada a eliminar Siegfried depois que este mate o dragão que toma conta do Ouro. Vem, também, a aparecer no "Crepúsculo dos Deuses", na passagem denominada "Viagem de Siegfried pelo Reno". É um dos temas de mais fácil memorização, justamente porque consiste em um arpejo maior ascendente, no qual se ouve a quinta seguida da tônica, novamente a quinta, a tônica, a terça e a quinta na oitava acima. Tal simplicidade do tema foi apontada como correlata à simplicidade das coisas na Natureza, mesmo quando elas se tornam centrais: o valor que lhes é atribuído é que lhes imprimirá, a rigor, a marca da complexificação [RAWLINS, 2013], e merece destaque o parentesco que foi assinalado entre este tema e outros que também se caracterizariam por se comporem de arpejos diatônicos desdobrados ao longo do ciclo, como o do Arco-Íris que conduz ao Mundo dos Deuses e o da trompa de Siegfried, enquanto o retrato da inocência plena, e que exprimiriam, pois, a Natureza intocada, a substância virgem. O tema do Anel já vem a traduzir o Ouro trabalhado e convertido em símbolo do Poder de Alberich sobre a Natureza e o Mundo, e sua proximidade com o tema do Walhalla vem a caracterizar a este último, musicalmente, enquanto símbolo do Poder dos Deuses sobre o Mundo. O tema das Maçãs de Ouro, trazendo como embrião o tema de Froh, o irmão de Freya que, pela refração da luz, faz surgir Bifrost, a ponte do Arco-Íris, aponta para a ligação entre o mundo do efêmero e o do eterno, já que as Maçãs em questão é que assegurariam a eterna juventude dos Deuses e lhes permitiriam distinguir-se dos mortais [HEISE, 2013].


Bibliografia

CAMARGO, Ricardo Antonio Lucas. Vulnerabilidades e irracionalidades no coração das trevas. http://observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=591MOS001, acessado em 25 maio 2010.

ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. Trad. Fernando Thomaz & Natália Nunes. Sâo Paulo: Martins Fontes, 1993.

HEISE, Paul Brian. The wound that will never heal. http://www.wagnerheim.com/, acessado em 21 jul 2013.

HOLLINRAKE, Roger. Nietzsche, Wagner e a filosofia do pessimismo. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.

MANN, Heinrich. O pensamento vivo de Nietzsche. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Martins Editora/EDUSP, 1975.

RAWLINS, Eric. Wagner's music - the leitmotifs.  http://www.well.com/user/woodman/singthing/ring/themusic.html , acessado em 9 fev 2013,

ROSO DE LUNA, Mario. Simbología arcaica. Madrid: Pueyo, 1921.