ATUALIDADE DO “DOUTOR FAUSTO” DE THOMAS MANN QUANTO À
SOBREVIVÊNCIA DO ESTADO DE DIREITO
(atualização do texto-base do pronunciamento do autor no Congresso do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública realizado em São Paulo no dia 24 de junho de 2016).
(atualização do texto-base do pronunciamento do autor no Congresso do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública realizado em São Paulo no dia 24 de junho de 2016).
Quando o mundo se debate em meio a uma crise econômica e
afloram, após um período de intenso consumismo, frustrações, medos, angústias,
por vezes, ao invés de se buscar diagnosticar adequadamente as causas do
problema, as preocupações se voltam a descobrir a identidade de um inimigo,
cuja destruição passa a ser almejada como a grande solução para tudo.
O perigo de uma irracionalidade que atinge até mesmo os
portadores de diploma universitário pode ser melhor entendido a partir do exame
de circunstâncias similares já exploradas na literatura.
Quando da ascensão do nazismo, a República de Weimar estava
polarizada entre o conservador Paul von Hindemburg e o comunista Ernest
Thaelmann, abrindo ensejo a que surgissem arrivistas que se aproveitassem dos
cochilos da Razão, do clima de medo, para fixarem a atenção nos inimigos comuns
e agirem sem os limites da Constituição de 1919. Thomas Mann, ainda aos tempos
do Império Prussiano, registrou o fanatismo em ebulição no conto "Gladius
Dei" e o apontou em meio à intelectualidade prenazista no "Doutor
Fausto"; os filmes do expressionismo alemão, como o Dr. Mabuse (tanto as
versões de 1922 e 1923 - O grande jogador
e Inferno do crime - quanto a de 1933
- O testamento do Dr. Mabuse), de
Fritz Lang, retratam bem aquele clima em que uma crise econômica, administrada
por uma percebida incompetência do governo social-democrata, conduzia muitos a
louvarem as soluções de força, aparentemente mais rápidas.
A história do Freikorps,
responsável pelo assassinato de Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht e, mais tarde,
de Walther Rathenau, mereceria ser recordada, porque é no culto da força que
essa milícia direitista se forjou e foi dela que Hitler extraiu os mais
furiosos dos membros da SS, e a formação de milícias informais de
extrema-direita que juram estar a exercer o direito de livre manifestação do
pensamento quando ofendem e mesmo agridem fisicamente pessoas que não seguem o
seu modo de ser, o seu vocabulário e mesmo a sua raiva na mesma intensidade
tem-se, nos últimos tempos, verificado com grande frequência.
A escolha do Dr.
Fausto deu-se, aqui, a partir de uma conversa com o Prof. Guilherme José
Purvin de Figueiredo em 6 de março de 2016, bem como da formação de um pequeno
grupo de discussão na internet.
A razão de ser desta escolha está precisamente no dado de se
tratar do retrato mais detalhado que se conhece do estado de espírito que levou
os alemães, considerados a nação mais culta da Europa, à insanidade que
desencadeou a II Guerra.
Não é casual, precisamente pela consideração da cultura na
Alemanha, que a trama gire em torno da biografia do compositor Adrian
Leverkühn, narrada pelo Professor Serenus Zeitblom, seu amigo.
O papel das Artes e das Ciências, a questão dos
engajamentos, tudo isto vem a aflorar neste romance do qual seria praticamente
impossível realizar uma análise topográfica sem amputar aspectos de
importância.
Em vários momentos, põe o escritor teuto-brasileiro na boca
do narrador, Professor Serenus Zeitblom, a expressão de meus pensamentos com as
palavras que eu gostaria de haver escrito.
Por exemplo, minha posição em face da religiosidade está
admiravelmente posta nesta passagem, em que o narrador recorda os tempos em que
com o protagonista, o compositor Adrian Leverkühn, estudou teologia em Halle,
trazendo, de quebra, a questão das lutas sectárias:
“Não sou irreligioso, não. Pelo
contrário, compartilho a opinião de Schleiermacher, outro teólogo de Halle, e
que definiu a Religião como ‘o senso e o gosto do infinito’, vendo nela um
‘fato constituinte’, inerente ao homem. Por isso, a Ciência da Religião deveria
lidar não só com axiomas filosóficos senão também com um fato psíquico,
inerente às pessoas. [...] A religiosidade, que em absoluto julgo alheia a meu
coração, é certamente diferente da religião positiva, ligada a uma confissão.
Não teria sido mais indicado abandonar o ‘fato’ desse senso humano do infinito
ao sentimento piedoso, às Belas-Artes, à livre contemplação e até à pesquisa
exata, que sob forma de cosmologia, astronomia, física teórica pode servir a
tal senso, dedicando-se de modo perfeitamente religioso ao mistério da Criação
– ao invés de fazer dele uma ciência espiritual à parte e de alicerçar nele um
edifício de dogmas, cujos adeptos se combatem cruelmente por causa de um verbo
auxiliar?”[ MANN, Thomas. Doutor Fausto. Trad. Herbert Caro.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 126-7].
Note-se que, nesta passagem, para o fim de iniciarmos os
debates em torno da relevância deste romance para a compreensão da temática da
sobrevivência do Estado de Direito, o próprio sentido da divergência de
entendimentos como apta a gerar os conflitos em torno da concepção de vida, e a
conversão do engajamento em tais ou quais correntes, sejam religiosas, sejam
políticas, como apta a levar a distorções. Essas divergências em busca do que
cada qual entenda como o melhor não só para si quanto para o meio em que vive,
inexoravelmente, tenderiam a explodir em disputas [SCHMITT, Carl.
Teologia política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey,
2009, p. 10].
A presença dos partidos políticos como meios de canalização
das correntes ideológicas que buscam o exercício dos Poderes Legislativo e
Executivo, contendo, assim, as explosões espontâneas das classes que disputam a
prevalência dos respectivos interesses na composição da vida social – não é
casual que em todas as experiências totalitárias, o pluralismo partidário seja
visto com desconfiança[CAMPOS, Francisco. Diretrizes constitucionais do novo
Estado brasileiro. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 35, n. 73, p. 7, jan/mar
1938], de tal sorte que, ou se estabelece a unicidade, como foi o caso da URSS
[BONAVIDES, Paulo. Ciência política. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 398], ou se
estabelece a proibição pura e simples, como foi o caso do Estado Novo português
[CAETANO, Marcello. Manual de ciência política e Direito Constitucional. Coimbra:
Almedina, 2010, t. 1, p. 246] - é considerada um traço indispensável a que se
possa materializar o Estado de Direito, porque é a partir do encontro dessas
posições que seria assegurada a participação na formação da ordem jurídica
[KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2009, p. 155].
“A democracia como princípio
constitucional expressa a liberdade e a autodeterminação do povo para decidir
sobre seu futuro e conferir legitimidade aos governantes, o que pressupõe a
própria edificação popular da organização do ordenamento jurídico fundamental
do Estado e de toda a comunidade em seus aspectos materiais e vitais”[TORELLY,
Paulo Peretti. Soberania, Constituição e mercado. São Paulo: Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p. 214 (tese de doutoramento)].
É justamente a partir
dos embates juridicamente disciplinados entre as correntes ideológicas que os
mais variados interesses presentes na sociedade podem vir a ter os respectivos
valores consagrados em informadores de comandos normativos, de tal sorte que
estes serão a expressão do ponto de equilíbrio entre “capital” e “trabalho”,
“fornecedores” e “consumidores” etc. É em função dessa mesma participação que
se entende, também, o porquê de se consagrarem, por vezes, nos textos
constitucionais, simultaneamente, disposições ligadas a modelo ideológicos
puros antagônicos entre si [SOUZA, Washington Peluso Albino de. Teoria
da Constituição Econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 198].
Por isto, o desgaste dos partidos, na República de Weimar,
foi tido como um dos sintomas do esgarçamento dos liames sociais, conduzindo a
lutas sectárias, que chegavam, mesmo, às vias de fato [SOLON, Ari Marcelo. Teoria
da soberania como problema da norma e da decisão. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 1997, p. 106].
O desencanto com a própria vida partidária, na experiência
humana acumulada, tem sido amplamente aproveitado para as aventuras em direção
à entronização de salvadores da Pátria, heróis que canalizariam todas as
esperanças da população [CAMPOS, Francisco. Diretrizes constitucionais do novo
Estado brasileiro. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 35, n. 73, p. 11, jan/mar
1938; SCHMITT, Carl. Teologia política. Trad. Elisete
Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 104].
Como observa Marcelo S. Ridenti, no colóquio sobre o
romance:
“A representação parlamentar ainda é um eixo
essencial das sociedades democráticas, mas é praticamente consenso que enfrenta
séria crise mundo afora, com uma espécie de divórcio entre representantes e
representados que se expressa, por exemplo, no forte absenteísmo nas eleições”
[Thomas Mann – atualidade da obra “Doutor Fausto” no campo da política, da
literatura e da música. In: < http://beta.brasa.art.br/ibap/1322-2/>, acessado em 1º de maio de 2016].
A progressão do estado de espírito alemão, da Unificação,
passando pela I Guerra, em direção às frustrações da República de Weimar e o
pacto com forças que prometiam barrar os perigos que o homem médio visualizava
(notadamente o avanço bolchevista) e trazer-lhe um destino glorioso [BOBBIO,
Norberto. Os intelectuais e o poder. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São
Paulo: UNESP, 1997, p. 49], para desaguar na destruição generalizada na II
Guerra Mundial é alegorizada, aqui, pela confissão do personagem Adrian
Leverkühn acerca da venda de sua alma ao Diabo para a realização de um
monumento musical que superasse a própria Nona
Sinfonia de Beethoven:
“Eu estava a ponto de sair, mas Adrian
me deteve, chamando-me pelo nome de família – Zeitblom! – E também isto soava
bem cruel. Quando me voltava, disse ele:
– Achei a solução: aquilo não deve
existir.
– O que não deve existir, Adrian?
– O bom e o nobre – respondeu –, aquilo que
qualificamos de humano, que seja bom e nobre. Aquilo por cuja causa os homens
têm lutado e têm tomado bastilhas de assalto; aquilo cuja glória os extáticos
proclamaram jubilosamente; aquilo não deve existir. Será revogado. Eu o
revogarei.
– Não te compreendo inteiramente, meu
amigo. Que é que vais revogar?
– A Nona
sinfonia – replicou, sem acrescentar nenhuma palavra, por mais que eu
quisesse ouvi-la” [MANN, Thomas. Doutor Fausto. Trad. Herbert Caro.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 665].
A Nona Sinfonia, como o verdadeiro divisor
de águas, foi definida como a própria expressão da redenção, do ser humano e da
música, com seu hino schilleriano à alegria, à proclamação da unidade do gênero
humano, fundindo palavras, ritmos, melodias, harmonias, timbres [WAGNER,
Richard. A obra de arte do futuro. Trad. José M. Justo. Lisboa:
Antígona, 2003, p. 94-5; CAMPOS, Beatriz Schmidt & BARBOSA, Sidney. A
trajetória musical de Adrian Leverkühn delineada no romance Doutor Fausto, de
Thomas Mann. Revista Athena. Cáceres. 8, n. 1, p. 49-50, 2015, in: http://periodicos.unemat.br/index.php/athena/article/view/1176/1249, acessado em 7 jul 2016], precisamente o oposto da
“perdição” que assombra Leverkühn, que irá produzir a obra que a pretende
superar, mesmo destruir, porque o bom e o nobre estariam fadados a serem
varridos, ante o riso de Mefistófeles, ante a força cultuada e a aniquilação do
que não fosse digno de ser considerado “superior” em evidência [BRAGION,
Alexandre Mauro. A música do diabo: aspectos musicais no Fausto de Thomas Mann. Campinas:
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, 2013, p.
152 (tese de doutoramento)].
A obra-prima de Leverkühn, a Lamentação do Doutor Fausto,
propõe-se a inverter a Nona Sinfonia, tanto na forma quanto no conteúdo,
propõe-se a assinalar a destruição, a total dissolução do “aparentemente
com-sentido” em um “sem-sentido”, metáfora musical da hecatombe que se abateu
sobre o mundo inteiro a partir da explosão das forças irracionais.
A questão da vontade em direção ao poder, da renúncia ao
amor, do fascínio do grandioso, questão recorrente na obra de Wagner, que tanto
influenciou a Thomas Mann, aflora neste trecho, também:
“Eu tinha uma cabeça boa, bastante
ágil, e dons que misericordiosamente me haviam sido conferidos de cima. Poderia
tê-los utilizado com honestidade e modéstia. Mas sentia com demasiada clareza:
esta é a época em que já não é possível realizar uma obra de modo piedoso,
correto, com recursos decentes. A Arte deixou de ser exequível sem a ajuda do
Diabo e sem fogos infernais sob a panela... Sim, sim, meus caros companheiros,
certamente cabe aos nossos tempos a culpa de que a Arte estagna, que se tornou
por demais difícil e zomba de si mesma, que tudo se tornou por demais difícil e
a pobre criatura de Deus já não percebe nenhuma saída, na sua miséria. Mas quem
convidar o Diabo para sua casa, para superar o impasse e irromper para fora,
comprometerá sua alma e tomará a carga da culpa dos tempos sobre a própria
nuca, de modo que acabará condenado. Ora, está escrito. ‘Sede sóbrios e velai!’
Mas nem todos conseguem fazê-lo. Ao contrário, ao invés de cuidarem sabiamente
de tudo quanto for necessário na terra, a fim de que nela as coisas melhorem, e
de contribuírem sisudamente para que entre os homens nasça uma ordem suscetível
de propiciar à bela obra novamente um solo onde possa florescer e ao qual
queira adaptar-se, os indivíduos frequentemente preferem faltar às aulas e
entregar-se à embriaguez infernal. Assim sacrificam então suas almas e terminam
no podredouro” [MANN, Thomas. Doutor Fausto. Trad. Herbert Caro.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 694-5].
Claro que desta passagem poderia derivar-se o possível
problema de consciência decorrente do sacrifício dos escrúpulos em nome do
sucesso, especialmente econômico, no seio de uma sociedade eminentemente
competitiva, como é a sociedade ocidental, e que foi divisado como traço
essencial do capitalismo por quantos se debruçaram sobre este tema, seja tomando
posição favorável ou crítica, seja simplesmente descrevendo o respectivo
funcionamento [FARIA, Werter Rotumno. Constituição Econômica – liberdade de
iniciativa e de concorrência. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris,
1990, p. 108; SOUZA, Washington Peluso Albino de. Teoria da Constituição
Econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 434-5].
Aliás, a própria percepção de que os poderes desregrados
tendem a destruir tudo o que se interponha entre a vontade do respectivo
titular e a realização desta, aplicada também ao campo econômico, justifica os
balizamentos jurídicos também para o setor privado [BAPTISTA, Luiz Olavo. Empresa
transnacional e Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986, p. 32],
algo que não é negado nem mesmo pelo principal defensor da adoção do mercado
como medida de todas as coisas:
“O modelo da concorrência perfeita
baseia-se na presunção de fatos que só existem em alguns setores da vida
econômica e que não seríamos capazes de criar em muitos outros que, por vezes,
seria indesejável que o fizéssemos” [HAYEK, Friedrich August von. Direito,
legislação e liberdade. Trad. Henry Maksoud. São Paulo: Visão, 1985, v.
3, p. 70].
Por mais interessante e tentadora que seja tal derivação,
especialmente para o juseconomista, parece-me que se poderia também, para os
efeitos de nos mantermos fieis ao enfoque a ser dado ao romance, no parágrafo
que foi transcrito divisar a desesperança final de quem, obtendo a ilusão de
onipotência, buscou a máxima afirmação do EU, ainda que a preço da perdição,
assim como pessoas, em nome do afastamento de um “ismo” indesejado, que foi
mais tarde sendo substituído por outros inimigos, e com a promessa de um futuro
glorioso, “deixam o Céu por ser escuro e vão ao Inferno à procura de luz”, como
diz o verso de Lupicínio Rodrigues em sua canção de 1948 intitulada “Esses
moços, pobres moços”, relativizando os limites inerentes ao Estado de Direito,
liberando as fúrias sem sequer desejarem pesar as consequências disto, de tal
sorte que defendem damas, combatem demônios, mandam à fogueira apóstatas,
canonizam os seus heróis [SCHMITT, Carl. Teologia política. Trad. Elisete
Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 57], sem sequer entenderem do que
falam e o que fazem, até que as fúrias que liberaram corram o real risco de se
abaterem sobre elas, atiram-se à perdição de bom grado, como o faz Adrian Leverkünh,
pretextando assistir à estreia austríaca da Salomé, de Richard
Strauss, em Graz, e, na realidade, buscando encontrar uma meretriz com a qual
deixara, entretanto, de consumar o ato que custaria a sua alma:
“Viajou sozinho, e não se pode
precisar, com certeza, se executou o seu pretenso propósito e se encaminhou de
Graz a Pressburg, ou talvez de Pressburg a Graz, ou apenas fingiu ter estado em
Graz, limitando-se à visita a Pressburg, a Poszony húngara. Pois aquela cuja
carícia ele trazia consigo viera parar numa casa dessa cidade, já que tivera de
sair do lugar onde antes exercia seu ‘ofício’ em virtude de uma hospitalização.
Foi no novo domicílio que o obcecado a encontrou” [MANN, Thomas.
Doutor Fausto. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2000, p. 216-7]
A perdição consciente da alma, buscada por Leverkühn, preferindo
os riscos da doença e da loucura à frustração de seus desejos – algo que já o
põe, de saída, como um anti-Parsifal, já que o herói homônimo do drama
wagneriano chega inconscientemente ao Jardim das Delícias de Klingsor, e, ao
tornar-se consciente, sentindo a mesma dor de Amfortas, rejeita a sedução de
Kundry -, como a perdição consciente, buscada pelos cultos alemães, preferindo
cair na barbárie e no arbítrio a ter de amargar tanto a humilhação da derrota
na Primeira Guerra quanto o próprio perigo do bolchevismo.
Ao contrário do Estado de Direito, que tanto liberais como
Thomas Mann quanto social-democratas como Hermann Heller procuraram salvar, em
virtude de nele ser essencial a previsibilidade das condutas como o meio mais
eficaz que se conhece para tornar possível a liberdade individual [TELLES
JÚNIOR, Goffredo da Silva. Iniciação à ciência do Direito. São
Paulo: Saraiva, 2009, p. 364-5], o que valeria no seu substituto seria o são
sentimento do povo, entendido como “povo” o conjunto dos “seres superiores”,
como critério de justiça, rompendo com a visão do Estado não se confundindo com
o conjunto de indivíduos detentores do poder, “mas como um conjunto de
instituições, ou seja, de entidades estáveis e permanentes das quais tais
indivíduos não são mais do que elementos mais ou menos jungíveis, de maneira
que continuam na sua individualidade e continuidade, não obstante a
substituição das pessoas físicas por meio das quais funcionam” [ROMANO, Santi. Princípios
de Direito Constitucional geral. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1977, p. 198].
Basta a distribuição de rótulos, neste caso, para se
verificar se é o caso de reconhecer direitos ou prescrever deveres ao
indivíduo, a conduta se torna absolutamente irrelevante.
Nas mínimas coisas, a distribuição de rótulos faz emergir a
ideia da presença do inimigo a ser destruído entre nós, inimigo, este, que
traduz, também, o motivo para que se desenvolvam, entre os “amigos”, esforços
em comum [KARNAL, Leandro. O ódio nosso de cada dia. O Estado de São Paulo. São
Paulo, 1 nov 2014, in: < http://m.alias.estadao.com.br/noticias/geral,o-odio-nosso-de-cada-dia,1586401>, acessado em 1º
maio de 2016; GONÇALVES, Vanessa Chiari. Tortura e cultura policial no Brasil
contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 187; SCHMITT,
Carl. Teologia política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del
Rey, 2009, p. 76].
Eis um retrato dos rótulos que se desferiam na República de
Weimar ao que parecesse ofensivo a ouvidos conservadores:
“Tenho em mente o terceiro decênio do
nosso século, e em especial, naturalmente, a sua segunda metade, que trouxe
consigo, sem exagero, o deslocamento do foco cultural da França para a
Alemanha. Era deveras altamente significativo o fato de ter-se realizado a essa
altura, como aliás já mencionei, a estreia mundial – ou mais exatamente, a
primeira apresentação completa – do oratório apocalíptico de Adrian Leverkühn.
É escusado dizer que, muito embora o centro dos acontecimentos fosse Frankfurt,
um dos centros mais benevolentes e progressistas do Reich, ele não era recebido
sem furiosa hostilidade. Ouvia-se a exasperada acusação de escárnio à Arte, de
niilismo, de crime contra a Música, ou para empregarmos a mais corriqueira
invectiva daqueles dias, de ‘bolchevismo cultural’. Porém a obra e o intrépido
empreendimento de sua execução encontraram defensores tão inteligentes quanto
fecundos” [MANN, Thomas. Doutor Fausto. Trad. Herbert Caro.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 542].
Num Estado de Direito, a discussão acerca do papel das
artes, se voltadas a uma função pedagógica, se voltadas à propaganda de uma
causa, se voltadas a demonstrar perícia ou se voltadas a deleitar os sentidos,
tem plena pertinência, pois decorreria da compreensão que o próprio artista
tivesse acerca da arte por ele cultivada [BOBBIO, Norberto. Os
intelectuais e o poder. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: UNESP,
1997, p. 100].
Embora, mesmo num contexto democrático, não se possa cair na
tentação de sustentar que o terreno da cultura seja totalmente infenso à
atuação estatal, até porque os valores têm nela sua origem [MONTORO, André
Franco. Introdução à ciência do Direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2014, p. 657; CHAVES, Antonio. Criador da obra intelectual. São
Paulo: LTr, 1995, p. 36], é nas experiências de onipotência que se atribui às
artes, compulsoriamente, ou o caráter “engajado” – entendendo-se como tal tanto
a arte voltada a fins pedagógicos quanto a voltada à propaganda de uma causa -,
como se verificou na URSS [MONDAINI, Marco. O grande
terror no comunismo soviético. In: PINSKY, Jaime & PINSKY, Carla Bassanesi
(org.). Faces do fanatismo. São Paulo: Contexto, 2004, p. 163], ou o caráter “escapista” – entendendo-se como tal
tanto a arte voltada exclusivamente a demonstrar perícia ou a deleitar os
sentidos -, como ocorreu na Europa logo após o Congresso de Viena [REIS, Luís
Neri Pfützenreuter Pacheco dos. Winterreise: o processo de construção a
dois. Curitiba: Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal do Paraná, 2010, p. 18 (dissertação de mestrado)].
Tanto os burocratas de Estaline quanto os de Hitler, em
relação a tendências estéticas indesejáveis, classificavam-nas como
“decadentistas”.
Pode-se notar, outrossim, que a própria Arte vem a ter
exacerbado o seu caráter de deleite dos sentidos quando passa da fase
“artesanal” para a “industrial”, de tal sorte que o “artístico” vem a se
identificar com o que pouco exige do público para a compreensão e apreciação
[CAMARGO, Ricardo Antonio Lucas. O capital na ordem jurídico-econômica.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 230-1].
Modo certo, fora do Estado de Direito, os que se tomam como
indesejáveis não serão perseguidos e punidos em razão de algo que façam, mas
sim em razão de convicções ou pertinência a grupos tidos como “daninhos”,
compostos por “inimigos”, e o mal-estar que venham a suportar será justificado
mediante apelos fáceis a dados de afetividade, “slogans”, e na medida em que
possam servir de escarmento para eventuais rebeldes e de divertimento para os
beneficiários do sistema, não será decorrente da comprovação da prática de um
ato delituoso, nem será aplicada na forma da lei [CARNEIRO, Maria Luíza
Tucci. A era nazi e o anti-semitismo. In: PINSKY, Jaime & PINSKY, Carla
Bassanesi (org.). Faces do fanatismo. São Paulo: Contexto, 2004, p. 125].
Quer dizer, fora de um Estado de Direito, a própria
aplicação das sanções converte-se em meio de deleitar os sentidos, ao invés de
recompor o equilíbrio social rompido pela violação da lei [GONÇALVES, Vanessa
Chiari. Tortura e cultura policial no Brasil contemporâneo. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 197].
O tema da Arte enquanto mero deleite dos sentidos ou como
ruptura das limitações em que se põe o ser humano na caverna platônica foi
apresentado pelo personagem de Thomas Mann que faria “pendant” a Gurnemanz,
diante do anti-Parsifal Adrian Leverkühn:
“Kretzschmar apresentava ainda vários
gracejos pitagóricos dessa espécie, que mais visavam os olhos que os ouvidos, e
nos quais a Música sempre se comprouvera. Revelava que, em última análise, os
atribuía a certa assensualidade e até antissensualidade, inerentes à Música,
com seu certo pendor pelo ascetismo. Era ela realmente a mais espiritual de
todas as artes, o que já se manifestava no fato de forma e conteúdo,
entrelaçados nela mais que em nenhuma outra, serem simplesmente uma e a mesma
coisa. Dizia-se, na verdade, que a Música 'se dirige ao ouvido', mas que faz
isto relativamente, na medida em que o ouvido, como os demais sentidos, for
órgão mediador e recipiente do espiritual. Talvez - disse Kretzschmar - seja o
mais íntimo desejo da Música não ser ouvida, nem tampouco ser vista ou sentida,
e sim, se possível, ser percebida e enxergada unicamente num alem dos sentidos
e até da alma, numa região espiritualmente pura. Mas, estando ligada ao mundo
dos sentidos, também cabe a ela almejar a mais forte, a mais sedutora
sensualização, como uma Kundry, que, sem desejar o que faz, enlaça o pescoço do
Tolo com os braços macios da volúpia” [MANN, Thomas. Doutor Fausto. Trad.
Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 90].
Kretschmar, o Mestre de Leverkühn, chega a qualificar a
música como uma Kundry, à espera de um Parsifal, o “Tolo Inocente tornado Sábio
pela compaixão”, que atalhe o seu caminhar errático entre o Jardim das Delícias
e o Castelo do Graal.
Um dado interessante é que, a despeito de haver composto
para o teatro lírico, Leverkühn rejeita Wagner, ou o vê com reservas.
Embora seu sistema musical se aproxime do de Schönberg, seu
anti-wagnerianismo é franco [SCHNEIDER, Wolfgang. Mann and his musical demons.
In: < http://www.signandsight.com/features/1440.html>, acessado em 7 jul 2016], e a adversativa se impõe
porque constitui praticamente um consenso a ultrapassagem, por parte do gênio
de Bayreuth, dos limites do tonalismo, cuja ideia é sempre a de conduzir a um
repouso final, a uma certa estabilidade após um período de movimentação [BORGES,
Maryson José Siqueira. A música demoníaca de Adrian Leverkühn como síntese da
danação romântica da arte moderna. Pandaemonium Germanium. no.15 São Paulo 2010. In: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1982-88372010000100006 , acessado em 7 de julho de 2016; SOUZA, Gustavo Ramos de.
A fortuna crítica de Thomas Mann no Brasil: Carpeaux e Rosenfeld. Em
Tese. Belo Horizonte, v. 21, n.1, p. 126, jan/abr 2015].
Bem assim a falta de entusiasmo de Serenus Zeitblom com
Wagner e o entusiasmo com a música do amigo.
Para o compositor Flo Menezes, no colóquio sobre o romance,
isto não seria de surpreender, pois “a música do final do século XIX, depois de
Wagner, é, necessariamente, wagneriana, da mesma forma como, justamente por
isso, é em grande parte também anti-wagneriana. Brahms, na corrente
‘oposicionista’ e tido por muitos como um ‘clássico’ dentre os românticos, é
por diversas vezes mais revolucionário que o próprio Wagner. Sua obra é, vista
como um todo, mas também em detalhes, maior que a de Wagner, e é mais a ele que
a Wagner que se reporta comumente Schönberg!” [Thomas Mann – atualidade da obra
“Doutor Fausto” no campo da política, da literatura e da música. In: < http://beta.brasa.art.br/ibap/1322-2/>, acessado em 1º de maio de 2016].
Entretanto, não parece presente um paradoxo, pela aparente
analogia da renúncia do amor em prol da ambição, próprias tanto a Alberich
quanto a Klingsor?
A própria redenção pelo amor, afastada quando morre Nepomuk,
o adorável sobrinho de Leverkuhn, o único ser a quem este amara
verdadeiramente, totalmente desinteressado de si?
Visualizo fortíssima influência de Wagner na própria
construção deste romance, como na de muitas outras obras de Mann. Assim como
Wagner, em sua conhecida megalomania, buscou a “Obra de Arte total” [OLIVEIRA,
Sidnei. O Beethoven, de Wagner, em O nascimento da tragédia, de Nietzsche.
Guarulhos: Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
Federal de São Paulo, 2013, p. 96-7 (dissertação de mestrado)], com a fusão de
todas as artes, Mann escreveu, aqui, um romance no qual a música é quase
personagem, e em várias dimensões [BRAGION, Alexandre Mauro. A
música do diabo: aspectos musicais no Fausto de Thomas Mann. Campinas:
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, 2013, p.
53 (tese de doutoramento)]: na extrema racionalidade e, ao mesmo, tempo,
sensibilidade de Kretschmar, no ascetismo demoníaco de Leverkühn (traduzido na
renúncia ao amor, em função da carreira, e a redução da experiência amorosa ao
sexo comercial - a Hetaera Esmeralda
-), na futilidade do violinista donjuanesco Rudolf Schwerdtfeger que será, mais
tarde, morto a tiros por Inês Institoris, uma das suas vítimas mais tímidas, a
subtração da própria possibilidade de redenção da alma perdida, com a morte do
pequeno Nepomuk, o “Eco” [CAMPOS, Beatriz Schmidt & BARBOSA, Sidney. A
trajetória musical de Adrian Leverkühn delineada no romance Doutor Fausto, de
Thomas Mann. Revista Athena. Cáceres. 8, n. 1, p. 43-4, 2015, in: http://periodicos.unemat.br/index.php/athena/article/view/1176/1249, acessado em 7 jul 2016], que não deixa de remeter a um
outro personagem antípoda de Fausto, qual seja, o menino que morre por se
recusar a ceder às tentações do mefistofélico rei dos Elfos no poema de Goethe
de 1782, musicado por Schubert em 1815.
O pequeno moribundo teme ser levado por ele ao seu reino,
embora o pai o resguarde firme e quente, e tente mostrar-lhe que os melífluos
convites da maligna criatura mais não são que os exageros da imaginação
infantil em face de fenômenos naturais, numa fria noite de inverno:
“Quem
cavalga tão tarde pela noite e ao vento?
É o pai
com o seu filho;
Ele
segura a criança bem nos braços,
Segura-o
com firmeza, mantém-no quente.
‘Meu
filho, por que escondes tão receoso teu rosto?’
‘Pai, não
vês o Rei dos Elfos?
O Rei dos
Elfos com coroa e cauda?’
‘Meu
filho, é um fio de névoa.’
‘Tu,
querida criança, vem comigo!
Maravilhosos
jogos eu jogarei contigo,
Na praia
há muitas flores coloridas,
A minha
mãe tem várias túnicas douradas.’
‘Meu pai,
meu pai, não ouves
O que o
Rei dos Elfos baixinho me promete?’
‘Calma!
Sossega, meu filho,
O vento é
que murmura nas folhas secas.’
‘Queres,
belo garoto, vir comigo?
As minhas
filhas te farão a corte;
Minhas
filhas conduzem a dança noturna,
E
embalarão, dançarão e cantarão para adormeceres’.
‘Meu pai,
meu pai, não vês ali
As filhas
do Rei dos Elfos no local sombrio?’
‘Meu
filho, meu filho, eu vejo perfeitamente:
São os
velhos salgueiros de cor cinzenta.’
‘Eu
amo-te; encanta-me a tua linda figura,
E se não
vieres por bem, eu usarei da força.’
‘Meu pai,
meu pai, ele agarra-me agora,
O Rei dos
Elfos machucou-me!’
O pai
estremece, ele cavalga rapidamente,
Ele
segura nos braços a criança gemente,
Com muito
custo à fazenda ele chega.
Nos seus
braços a criança jazia morta.”
[GOETHE, Johann Wolfgang. O rei dos Elfos. Trad. Francisco
José dos Santos Braga. In: BRAGA, Francisco José dos Santos. Erlkönig (rei dos Elfos) de Schubert. In: http://www.concertino.com.br/cms2/files/Erlknig.pdf, acessado em 4 jul 2016].
O tema do sacrifício da inocência, diante da impotência
daquele que a deveria guardar, é frequente na literatura romântica – o grande
rival de Wagner no teatro lírico, Giuseppe Verdi, musicou o drama O rei se diverte, de Victor Hugo,
rebatizando-o para Rigoletto, e
explora, efetivamente, o tema, com a morte de Gilda -, e não deixa, num certo
sentido, de se reportar a temas como o “sacrifício de Ifigênia”, entre os
gregos, o “sacrifício da Filha de Jefté”, entre os hebreus, e tantos outros de
cunho religioso que apareciam na Antiguidade [BAYON, Fernando. Thomas Mann y el
desencantamiento de las tradiciones alemanas. www.raco.cat/index.php/HMiC/article/download/22079/21914, acessado em 7 jul 2016].
Enquanto Parsifal é o “inocente triunfante”, tanto Nepomuk
quanto a criança do poema O rei dos Elfos
representam o papel do “inocente destinado ao sacrifício”.
No poema de Goethe, ora evocado, também se exprime o embate
da Razão Reflexiva e Perscrutadora, própria do espírito clássico-iluminista, e
do Medo do Desconhecido e do Diferente, presente na Idade Média revalorizada
pelo romantismo (visto, goethianamente, como doentio [STEGMEIER, Werner. O
pessimismo dionisíaco de Nietzsche: interpretação contextual do aforismo 370 d’
A gaia ciência. Estudos Nietzsche.
Curitiba, v. 1, n. 1, p. 42, jan/jun 2010]), Medo, este, que está na raiz de
todos os fanatismos, especialmente o que conduziu à realização de autos-de-fé,
inclusive no III Reich.
No caso desta última interpretação – francamente possível,
dado o caráter ambíguo do poema [NOWINSKA, Magdalena. A intertextualidade no
processo da tradução literária. In: http://www.abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/079/MAGDALENA_NOWINSKA.pdf, acessado em 4 jul 2008] -, o paralelo entre a criança e o
pai do poema de Goethe já não se dá com Nepomuk e Leverkühn, mas sim com
Leverkühn, cercado pelos horrores de um episódio que não se sabe se, no
contexto do romance, efetivamente ocorrido ou decorrente de sua consciência culpada
por conta do episódio com a prostituta Esmeralda, e Serenus Zeitblom [BRAGION,
Alexandre Mauro. A música do diabo: aspectos musicais no Fausto de Thomas Mann. Campinas:
Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, 2013, p.
179-180 (tese de doutoramento); CAMPOS, Beatriz Schmidt & BARBOSA, Sidney.
A trajetória musical de Adrian Leverkühn delineada no romance Doutor Fausto, de
Thomas Mann. Revista Athena. Cáceres. 8, n. 1, p. 44, 2015, in: http://periodicos.unemat.br/index.php/athena/article/view/1176/1249, acessado em 7 jul 2016].
“Segundo Mann, esta determinante
presença romântica na alma alemã, como uma espécie de eco intermitente da
índole subjetivista desta nação, se traduzirá, na crise estética da arte
moderna, em música dodecafônica e, na crise sócio-política da República de
Weimar, no nacional-socialismo. Claro que não se trata de associar a questão
romântica de maneira determinista nem ao nazismo nem à música serial. O que
Mann concebe como o ônus romântico no desenvolvimento destes eventos é o fato
de ele ser para a Alemanha ainda o grande catalisador, a expressão fiel e
contundente, de uma série de valores subjetivistas e interiorizantes que dizem
respeito ao caráter e anseio introspectivo de sua burguesia, mas que pouco
contribuem para a necessidade de integração social mútua desta nação com os
outros países da Europa e para a instauração nela de uma coletividade mais
humanista. Mann critica, por isso, o pacto de conveniências fundado sobre a
manipulação anacrônica de alguns destes valores românticos. Segundo sua
concepção, neste pacto, a classe política, ao se apoderar do sentido
místico-nacionalista da atitude romântica, afere ao fascismo emancipatório do
anti-semitismo nazista a historicidade justificadora de seu isolamento e de
suas ações imperialistas, enquanto os artistas e os intelectuais, inebriados
pelo orgulho romântico do germanismo que se exalta, abrem mão de uma reflexão
crítica mais aguda, numa resignação muda diante do caos social que se anuncia,
em nome de uma estada tranqüila no mundo etéreo e ideal das elucubrações
estéticas e filosóficas” [BORGES, Maryson José Siqueira. A música demoníaca de
Adrian Leverkühn como síntese da danação romântica da arte moderna. Pandaemonium
Germanium. no.15 São Paulo 2010. In: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1982-88372010000100006 , acessado em 7 de julho de 2016]
Com efeito, a morte de Nepomuk acende em Leverkühn a certeza
de que sua perdição é irreversível, e qualquer consolo que lhe queira dar o
amigo Zeitblom é inútil, e então, sente-se imbuído da sua condição de alma
voltada ao Demônio:
“- Leva-o, monstro! – exclamou numa voz
que me penetrava até a medula –Leva-o, patife, mas faze-o logo, já que não
quiseste tolerar nem isso, velhaco que és! E eu pensara – continuou,
dirigindo-se subitamente a mim, num murmúrio confidencial e dando um passo para
a frente –, eu pensara que ele toleraria isso, só isso, talvez. Mas não! De
onde lhe viria a graça, a ele, o desgraçado? E justamente isto, ele o triturou
com seus pés, com sua fúria bestial! Leva-o, animal abjeto! – gritou,
distanciando-se novamente de mim, como se fosse em direção à cruz. – Leva seu
corpo, sobre o qual tens poder! Mesmo assim, terás de deixar em paz sua doce
alma. Eis o que te torna impotente e ridículo. Ainda que eternidades inteiras
se acumulem entre o meu lugar e o seu, saberei sempre que ele se encontra lá de
onde te enxotaram, porcalhão, e isso será para mim uma água balsâmica, um
hosana com que escarnecerei de ti na minha mais baixa perdição!” [MANN, Thomas.
Doutor
Fausto. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 664].
A Música já foi tratada como análoga ao Direito, porque
ambos teriam como característica comum viverem a partir da interpretação dos
respectivos “textos” para se fazerem vivos, embora,
quanto ao Estado de Direito, possa ser realizada, também, outra comparação: a
divisão de trabalho entre o “compositor” e o “intérprete”, entre o dotado de
funções nomogeradoras e o dotado de funções de interpretação e aplicação do
texto normativo.
Assim como, por maiores que sejam as liberdades do
intérprete musical, a utilização das indicações da partitura não podem deixar
de ser seguidas, sob pena de, ao invés de estar a executar obra alheia, ele
venha a estar a criar obra própria, o intérprete dos textos normativos, por
maior que seja a liberdade que tenha em optar por um dos seus sentidos
possíveis, quando foge do referencial dado, assume a condição de elaborador
originário do texto normativo, de criador do texto normativo geral e abstrato
em caráter inovatório [GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a
interpretação/aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002, p.
46-7; KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2009, p. 270-1].
As relações entre as notas na melodia já foram utilizadas
como dado de analogia para demonstrar que as relações de poder estariam
fundamentadas na natureza das coisas [ARISTÓTELES. A política. Trad. Mário
da Gama Kury. Brasília: UnB, 1997, p. 18-9], embora, no próprio âmbito musical,
mesmo quando se tome um contexto de escalas dominadas por uma nota fundamental,
seja no sistema modal, seja no sistema tonal, só para ficarmos na experiência
do Ocidente, todas as notas são vocacionadas a governarem a melodia, assim
como, num regime democrático, todas as correntes de pensamento, inclusive as
que s antagonizam com a própria ideia de democracia – não esqueçamos que
Hitler, Mussolini, Salazar, não foram guindados às posições que ocuparam por
processos violentos, mas sim dentro dos caminhos institucionais [BONAVIDES,
Paulo. Ciência política. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 123] -, teriam
a respectiva oportunidade de participar da definição do ordenamento jurídico.
Outra comparação importante: a adequação do instrumento à
melodia que se queira executar, tal como a adequação do instrumento processual
à pretensão que se queira deduzir, traduzindo-se na acepção mais tradicional do
“devido processo legal”.
Quanto ao caminhar errático da Música, qual Kundry, entre o
Jardim das Delícias e o Castelo do Graal, não deixa, em si mesmo, de remeter,
também, ao caminhar errático da humanidade entre períodos em que se cai num
plano em que tudo é permitido de acordo com o que a afetividade de quem for
dotado de mais força possibilitar e outros em que se sabe, precisamente, os
termos em que cada qual tem a sua esfera de atuação juridicamente protegida; no
âmbito econômico, temos as oscilações entre a prevalência dos embates de interesses
individuais no mercado e a atuação do Estado sobre e no domínio econômico, que
se pode dar desde uma simples correção de desequilíbrios até a direção, mesmo,
dos rumos da economia [SOUZA, Washington Peluso Albino de. Teoria da Constituição Econômica.
Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 415].
A própria Hetaera
Esmeralda, na equação inversa Kundry-Parsifal, procura, ainda, inutilmente,
dissuadir Leverkühn de seu intento, procura evitar a perdição da alma do
protagonista:
“Não há dúvida de que ela se lembrava
do fugidio visitante daquela noite. Sua aproximação, o ato de tocar-lhe a face
com o braço nu talvez houvessem sido sua maneira humilde, terna, de expressar
que compreendia tudo quanto o distinguia do resto de sua clientela. Da boca
dele soube a mulher que a viagem a Pressburg fora feita por sua causa – e, para
demonstrar-lhe sua gratidão, acautelou-o contra seu próprio corpo. Sei disso,
porque Adrian me contou: ela o acautelou, e não equivale essa advertência a uma
simpática prova da diferença que existe entre a humanidade superior de um ser e
sua parte física, caída na sarjeta e aviltada à condição de mero utensílio? A desventurada
acautelou contra ‘si mesma’ a quem a desejava, e isso representou um ato de
livre elevação da alma acima de sua existência carnal, um ato de distanciar-se
humanamente de tal situação, um ato de comoção, um ato de – permitam-me tal
palavra – amor. [...] A pobre moça deve ter se sentido purificada, justificada,
engrandecida e feliz, pelo fato de que o homem vindo de longe recusava, apesar
de qualquer perigo, renunciar a ela, e parece que recorreu a todos os doces
encantos de sua feminilidade para recompensá-lo de tudo quanto ele arriscava
por sua pessoa” [MANN, Thomas. Doutor Fausto. Trad. Herbert Caro.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 217-8].
Recordemos que Parsifal, o tolo inocente tornado sábio pela
compaixão, salva, redime Kundry, ao rejeitar a sua sedução, no drama wagneriano,
diferentemente de Leverkühn, o gênio tornado tolo pelo desejo, que se deixa perder
ao procurar Esmeralda e rejeitar suas advertências.
Quanto às Ciências, num Estado de Direito pretende-se que
elas se guiem pela fidelidade do pesquisador ao respectivo objeto de pesquisa,
de tal sorte que o resultado se mostra indiferente a que se agradem ou não os eventuais
superiores hierárquicos do pesquisador.
Isto não significa, é certo, a “imaculada concepção” da
Ciência, já que se sabe o papel que as exigências do mercado desempenham no
desenvolvimento de meios que agilizem o ingresso de receitas ou as do próprio
Poder Público no sentido de incremento do funcionamento da máquina pela qual se
manifesta [BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas. Trad.
Francisco M. Guimarães. Petrópolis/Brasília: Vozes/Universidade de Brasília,
1975, p. 80]; significa, sim, o reconhecimento de que a Ciência, com ou sem
atrelamento à viabilização de outras atividades, somente encontra terreno para
expandir-se, com a compreensão de que daqueles que a ela se dedicam não se pode
exigir a infalibilidade, justamente porque não atuam, nesta condição, em nome
de potestades transcendentes, de caráter onisciente, onipotente e onipresente,
no seio do Estado de Direito; justamente porque não há o atrelamento
obrigatório é que se recorda que “o que confere à verdade factual a natureza de
uma verdade efetiva é que os fatos ocorreram de uma determinada maneira e não
de outra” [LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos – um
diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988, p. 247].
Agora, no conturbado contexto em que as pessoas médias
apelavam a que os homens de pensamento apresentassem a solução para seus
problemas, desde que dissessem aquilo que queriam ouvir e não o que realmente
percebessem, com toda a honestidade, era comum conferir credibilidade apenas ao
que bajulasse o público.
Trata-se da tendência a pretender domesticar o próprio homem
de pensamento, pela respeitabilidade de sua posição, reduzindo-o, entretanto, à
condição de mero legitimador dos anseios das facções, sob a paradoxal pena de
descrédito [BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder. Trad.
Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: UNESP, 1997, p. 126].
O próprio processo educacional é visto, neste contexto de
irracionalidade e culto da força, como “destinado a servir a certos valores e
pressupõe, portanto, a existência de valores sobre alguns dos quais a discussão
não pode ser admitida” [CAMPOS, Francisco. Diretrizes constitucionais do novo
Estado brasileiro. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 35, n. 73, p. 20, jan/mar
1938].
Tal, aliás, a visão que é defendida pelo círculo capitaneado
pelo poeta Daniel Zur Höhe, a cuja casa comparece o narrador Zeitblom:
“A imparcialidade da pesquisa, o
pensamento livre, longe de representarem o progresso, pertenciam a um mundo
retardado, desinteressante. Concedia-se ao pensamento a liberdade de legitimar
a força, assim como, uns setecentos anos atrás, a razão tivera liberdade para
discutir a fé e demonstrar o dogma” [MANN, Thomas. Doutor Fausto. Trad.
Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 515].
O Professor Jorge de Almeida, no diálogo sobre o romance,
fez a seguinte observação:
“No caso do Doutor Fausto, lembremos que o romance foi escrito no exílio
durante a Segunda Guerra, enquanto Mann participava ativamente do esforço de
propaganda anti-nazista e o resultado do conflito ainda era incerto. Mas a
grande diferença ocorre na escolha de um narrador em primeira pessoa, Serenus
Zeitblom, mestre escola alemão classicista e humanista, que por conta de sua
visão de mundo apresenta a vida de Leverkühn a partir de uma perspectiva de
certo modo ‘ingênua’ e incompleta. O jogo temporal entre a necessidade de
compor as memórias do amigo e o embate, em tempo real, com as batalhas e
bombardeios da guerra cria ainda um outro deslocamento. Esses desencontros
atingem o ápice no final do livro, com a derrota da Alemanha, a visita ao campo
de concentração e as dúvidas que abalam Serenus, incapaz de manter sua
‘serenitas’ clássica diante do horror” [Thomas Mann – atualidade da obra
“Doutor Fausto” no campo da política, da literatura e da música. In: < http://beta.brasa.art.br/ibap/1322-2/>, acessado em 1º de maio de 2016].
Neste comentário, interessante se mostra a ideia de a
atribuição ao narrador do nome “Serenus” decorrer da busca da Serenitas, almejada por um dos
principais pensadores do início da República de Weimar, Max Weber, de quem o
Dr. Carl Schmitt [Teologia política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del
Rey, 2009, p. 142] pegou o gosto pela tipologia. Schmitt, porém, ao contrário
de Weber, hostilizado pelos direitistas por se opor ao assassinato dos
espartaquistas [SOLON, Ari Marcelo. Teoria da soberania como problema da norma e
da decisão. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997, p. 179],
entregar-se-á de corpo e alma à construção da teoria constitucional do III
Reich [BONAVIDES, Paulo. Ciência política. São Paulo:
Malheiros, 2013, p. 127-8].
O bom católico Schmitt, qual Leverkühn, vendendo a alma ao
Diabo, aparece como um “irmão espiritual” de Francisco Campos, autor tanto da
Constituição brasileira de 1937 como do Ato Institucional de 9 de abril de 1964
[MENEZES, Daniel Francisco Nagao. Francisco Campos, Carl Schmitt e a atuação do
Estado na economia. São Paulo: Faculdade de Direito da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, 2013, p. 168-170 (tese de doutoramento); RAMALHETE,
Clovis. Revolução como fonte do Direito. Revista de Direito Público. São
Paulo, v. 7, n. 32, p. 101, nov/dez 1974; SESTA, Mário Bernardo. As
Constituições do Brasil. In: SESTA, Mário Bernardo [org.]. Direito Constitucional.
Porto Alegre: CEUE, 1962, t. 1, p. 12].
Weber pode ser retratado como Kretschmar, como a influência
positiva que Schmitt, no entanto, arredou, do mesmo modo que Leverkühn. Já houve uma comparação entre Leo Naphta,
personagem de outro romance de Thomas Mann, A
montanha mágica, e Schmitt, feita pelo Professor Ari Marcelo Solon [Teoria
da soberania como problema da norma e da decisão. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 1997, p. 184].
Todos os temas aflorados ao longo desta fala mostram
relações entre passagens da obra escolhida e a questão da necessidade de se
preservar o Estado de Direito, qualquer que seja a respectiva manifestação,
seja como liberal, social, democrático, como for. Thomas Mann foi testemunha do
voluntarismo triunfante e triunfalista na culta Alemanha, eu mesmo fui
contemporâneo de eventos como o cerco ao Largo São Francisco, de que decorreu a
redação e leitura da Carta aos Brasileiros do Professor Goffredo da Silva
Telles Júnior, do atentado à sede da OAB e ao Riocentro, do bloqueio dos
cruzados novos, das privatizações a toque de caixa, dentre outros. Tudo temos a
temer quando secundarizamos a importância do Estado de Direito em nome de
conveniências atuais e contingentes. Thomas Mann demonstrou isto em várias
passagens do seu romance, que não teria como ser escandido aqui por falta de
tempo. Hoje, a questão é trazida, aqui, porque absolutamente necessária nos
tempos em que estamos vivendo, superando, outrossim, os termos reducionistas em
que se colocam as facções em combate.
ALMEIDA, Jorge de. Thomas Mann – atualidade da obra “Doutor
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