quarta-feira, 6 de julho de 2016

Adrian Leverkühn, o "Anti-Parsifal"


ATUALIDADE DO “DOUTOR FAUSTO” DE THOMAS MANN QUANTO À SOBREVIVÊNCIA DO ESTADO DE DIREITO
(atualização do texto-base do pronunciamento do autor no Congresso do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública realizado em São Paulo no dia 24 de junho de 2016).
 

Quando o mundo se debate em meio a uma crise econômica e afloram, após um período de intenso consumismo, frustrações, medos, angústias, por vezes, ao invés de se buscar diagnosticar adequadamente as causas do problema, as preocupações se voltam a descobrir a identidade de um inimigo, cuja destruição passa a ser almejada como a grande solução para tudo.
O perigo de uma irracionalidade que atinge até mesmo os portadores de diploma universitário pode ser melhor entendido a partir do exame de circunstâncias similares já exploradas na literatura.
Quando da ascensão do nazismo, a República de Weimar estava polarizada entre o conservador Paul von Hindemburg e o comunista Ernest Thaelmann, abrindo ensejo a que surgissem arrivistas que se aproveitassem dos cochilos da Razão, do clima de medo, para fixarem a atenção nos inimigos comuns e agirem sem os limites da Constituição de 1919. Thomas Mann, ainda aos tempos do Império Prussiano, registrou o fanatismo em ebulição no conto "Gladius Dei" e o apontou em meio à intelectualidade prenazista no "Doutor Fausto"; os filmes do expressionismo alemão, como o Dr. Mabuse (tanto as versões de 1922 e 1923 - O grande jogador e Inferno do crime - quanto a de 1933 - O testamento do Dr. Mabuse), de Fritz Lang, retratam bem aquele clima em que uma crise econômica, administrada por uma percebida incompetência do governo social-democrata, conduzia muitos a louvarem as soluções de força, aparentemente mais rápidas.
A história do Freikorps, responsável pelo assassinato de Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht e, mais tarde, de Walther Rathenau, mereceria ser recordada, porque é no culto da força que essa milícia direitista se forjou e foi dela que Hitler extraiu os mais furiosos dos membros da SS, e a formação de milícias informais de extrema-direita que juram estar a exercer o direito de livre manifestação do pensamento quando ofendem e mesmo agridem fisicamente pessoas que não seguem o seu modo de ser, o seu vocabulário e mesmo a sua raiva na mesma intensidade tem-se, nos últimos tempos, verificado com grande frequência.
A escolha do Dr. Fausto deu-se, aqui, a partir de uma conversa com o Prof. Guilherme José Purvin de Figueiredo em 6 de março de 2016, bem como da formação de um pequeno grupo de discussão na internet.
A razão de ser desta escolha está precisamente no dado de se tratar do retrato mais detalhado que se conhece do estado de espírito que levou os alemães, considerados a nação mais culta da Europa, à insanidade que desencadeou a II Guerra.
Não é casual, precisamente pela consideração da cultura na Alemanha, que a trama gire em torno da biografia do compositor Adrian Leverkühn, narrada pelo Professor Serenus Zeitblom, seu amigo.
O papel das Artes e das Ciências, a questão dos engajamentos, tudo isto vem a aflorar neste romance do qual seria praticamente impossível realizar uma análise topográfica sem amputar aspectos de importância.
Em vários momentos, põe o escritor teuto-brasileiro na boca do narrador, Professor Serenus Zeitblom, a expressão de meus pensamentos com as palavras que eu gostaria de haver escrito.
Por exemplo, minha posição em face da religiosidade está admiravelmente posta nesta passagem, em que o narrador recorda os tempos em que com o protagonista, o compositor Adrian Leverkühn, estudou teologia em Halle, trazendo, de quebra, a questão das lutas sectárias:
“Não sou irreligioso, não. Pelo contrário, compartilho a opinião de Schleiermacher, outro teólogo de Halle, e que definiu a Religião como ‘o senso e o gosto do infinito’, vendo nela um ‘fato constituinte’, inerente ao homem. Por isso, a Ciência da Religião deveria lidar não só com axiomas filosóficos senão também com um fato psíquico, inerente às pessoas. [...] A religiosidade, que em absoluto julgo alheia a meu coração, é certamente diferente da religião positiva, ligada a uma confissão. Não teria sido mais indicado abandonar o ‘fato’ desse senso humano do infinito ao sentimento piedoso, às Belas-Artes, à livre contemplação e até à pesquisa exata, que sob forma de cosmologia, astronomia, física teórica pode servir a tal senso, dedicando-se de modo perfeitamente religioso ao mistério da Criação – ao invés de fazer dele uma ciência espiritual à parte e de alicerçar nele um edifício de dogmas, cujos adeptos se combatem cruelmente por causa de um verbo auxiliar?”[ MANN, Thomas. Doutor Fausto. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 126-7].
Note-se que, nesta passagem, para o fim de iniciarmos os debates em torno da relevância deste romance para a compreensão da temática da sobrevivência do Estado de Direito, o próprio sentido da divergência de entendimentos como apta a gerar os conflitos em torno da concepção de vida, e a conversão do engajamento em tais ou quais correntes, sejam religiosas, sejam políticas, como apta a levar a distorções. Essas divergências em busca do que cada qual entenda como o melhor não só para si quanto para o meio em que vive, inexoravelmente, tenderiam a explodir em disputas [SCHMITT, Carl. Teologia política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 10].
A presença dos partidos políticos como meios de canalização das correntes ideológicas que buscam o exercício dos Poderes Legislativo e Executivo, contendo, assim, as explosões espontâneas das classes que disputam a prevalência dos respectivos interesses na composição da vida social – não é casual que em todas as experiências totalitárias, o pluralismo partidário seja visto com desconfiança[CAMPOS, Francisco. Diretrizes constitucionais do novo Estado brasileiro. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 35, n. 73, p. 7, jan/mar 1938], de tal sorte que, ou se estabelece a unicidade, como foi o caso da URSS [BONAVIDES, Paulo. Ciência política. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 398], ou se estabelece a proibição pura e simples, como foi o caso do Estado Novo português [CAETANO, Marcello. Manual de ciência política e Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 2010, t. 1, p. 246] - é considerada um traço indispensável a que se possa materializar o Estado de Direito, porque é a partir do encontro dessas posições que seria assegurada a participação na formação da ordem jurídica [KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 155].
“A democracia como princípio constitucional expressa a liberdade e a autodeterminação do povo para decidir sobre seu futuro e conferir legitimidade aos governantes, o que pressupõe a própria edificação popular da organização do ordenamento jurídico fundamental do Estado e de toda a comunidade em seus aspectos materiais e vitais”[TORELLY, Paulo Peretti. Soberania, Constituição e mercado. São Paulo: Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p. 214 (tese de doutoramento)].
 É justamente a partir dos embates juridicamente disciplinados entre as correntes ideológicas que os mais variados interesses presentes na sociedade podem vir a ter os respectivos valores consagrados em informadores de comandos normativos, de tal sorte que estes serão a expressão do ponto de equilíbrio entre “capital” e “trabalho”, “fornecedores” e “consumidores” etc. É em função dessa mesma participação que se entende, também, o porquê de se consagrarem, por vezes, nos textos constitucionais, simultaneamente, disposições ligadas a modelo ideológicos puros antagônicos entre si [SOUZA, Washington Peluso Albino de. Teoria da Constituição Econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 198].
Por isto, o desgaste dos partidos, na República de Weimar, foi tido como um dos sintomas do esgarçamento dos liames sociais, conduzindo a lutas sectárias, que chegavam, mesmo, às vias de fato [SOLON, Ari Marcelo. Teoria da soberania como problema da norma e da decisão. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997, p. 106].
O desencanto com a própria vida partidária, na experiência humana acumulada, tem sido amplamente aproveitado para as aventuras em direção à entronização de salvadores da Pátria, heróis que canalizariam todas as esperanças da população [CAMPOS, Francisco. Diretrizes constitucionais do novo Estado brasileiro. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 35, n. 73, p. 11, jan/mar 1938; SCHMITT, Carl. Teologia política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 104].
Como observa Marcelo S. Ridenti, no colóquio sobre o romance:
 “A representação parlamentar ainda é um eixo essencial das sociedades democráticas, mas é praticamente consenso que enfrenta séria crise mundo afora, com uma espécie de divórcio entre representantes e representados que se expressa, por exemplo, no forte absenteísmo nas eleições” [Thomas Mann – atualidade da obra “Doutor Fausto” no campo da política, da literatura e da música. In: < http://beta.brasa.art.br/ibap/1322-2/>, acessado em 1º de maio de 2016].
A progressão do estado de espírito alemão, da Unificação, passando pela I Guerra, em direção às frustrações da República de Weimar e o pacto com forças que prometiam barrar os perigos que o homem médio visualizava (notadamente o avanço bolchevista) e trazer-lhe um destino glorioso [BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: UNESP, 1997, p. 49], para desaguar na destruição generalizada na II Guerra Mundial é alegorizada, aqui, pela confissão do personagem Adrian Leverkühn acerca da venda de sua alma ao Diabo para a realização de um monumento musical que superasse a própria Nona Sinfonia de Beethoven:
“Eu estava a ponto de sair, mas Adrian me deteve, chamando-me pelo nome de família – Zeitblom! – E também isto soava bem cruel. Quando me voltava, disse ele: 
– Achei a solução: aquilo não deve existir.
– O que não deve existir, Adrian?
 – O bom e o nobre – respondeu –, aquilo que qualificamos de humano, que seja bom e nobre. Aquilo por cuja causa os homens têm lutado e têm tomado bastilhas de assalto; aquilo cuja glória os extáticos proclamaram jubilosamente; aquilo não deve existir. Será revogado. Eu o revogarei.
– Não te compreendo inteiramente, meu amigo. Que é que vais revogar?
– A Nona sinfonia – replicou, sem acrescentar nenhuma palavra, por mais que eu quisesse ouvi-la” [MANN, Thomas. Doutor Fausto. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 665].
 A Nona Sinfonia, como o verdadeiro divisor de águas, foi definida como a própria expressão da redenção, do ser humano e da música, com seu hino schilleriano à alegria, à proclamação da unidade do gênero humano, fundindo palavras, ritmos, melodias, harmonias, timbres [WAGNER, Richard. A obra de arte do futuro. Trad. José M. Justo. Lisboa: Antígona, 2003, p. 94-5; CAMPOS, Beatriz Schmidt & BARBOSA, Sidney. A trajetória musical de Adrian Leverkühn delineada no romance Doutor Fausto, de Thomas Mann. Revista Athena. Cáceres. 8, n. 1, p. 49-50, 2015, in: http://periodicos.unemat.br/index.php/athena/article/view/1176/1249, acessado em 7 jul 2016], precisamente o oposto da “perdição” que assombra Leverkühn, que irá produzir a obra que a pretende superar, mesmo destruir, porque o bom e o nobre estariam fadados a serem varridos, ante o riso de Mefistófeles, ante a força cultuada e a aniquilação do que não fosse digno de ser considerado “superior” em evidência [BRAGION, Alexandre Mauro. A música do diabo: aspectos musicais no Fausto de Thomas Mann. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, 2013, p. 152 (tese de doutoramento)].
A obra-prima de Leverkühn, a Lamentação do Doutor Fausto, propõe-se a inverter a Nona Sinfonia, tanto na forma quanto no conteúdo, propõe-se a assinalar a destruição, a total dissolução do “aparentemente com-sentido” em um “sem-sentido”, metáfora musical da hecatombe que se abateu sobre o mundo inteiro a partir da explosão das forças irracionais.
A questão da vontade em direção ao poder, da renúncia ao amor, do fascínio do grandioso, questão recorrente na obra de Wagner, que tanto influenciou a Thomas Mann, aflora neste trecho, também:
“Eu tinha uma cabeça boa, bastante ágil, e dons que misericordiosamente me haviam sido conferidos de cima. Poderia tê-los utilizado com honestidade e modéstia. Mas sentia com demasiada clareza: esta é a época em que já não é possível realizar uma obra de modo piedoso, correto, com recursos decentes. A Arte deixou de ser exequível sem a ajuda do Diabo e sem fogos infernais sob a panela... Sim, sim, meus caros companheiros, certamente cabe aos nossos tempos a culpa de que a Arte estagna, que se tornou por demais difícil e zomba de si mesma, que tudo se tornou por demais difícil e a pobre criatura de Deus já não percebe nenhuma saída, na sua miséria. Mas quem convidar o Diabo para sua casa, para superar o impasse e irromper para fora, comprometerá sua alma e tomará a carga da culpa dos tempos sobre a própria nuca, de modo que acabará condenado. Ora, está escrito. ‘Sede sóbrios e velai!’ Mas nem todos conseguem fazê-lo. Ao contrário, ao invés de cuidarem sabiamente de tudo quanto for necessário na terra, a fim de que nela as coisas melhorem, e de contribuírem sisudamente para que entre os homens nasça uma ordem suscetível de propiciar à bela obra novamente um solo onde possa florescer e ao qual queira adaptar-se, os indivíduos frequentemente preferem faltar às aulas e entregar-se à embriaguez infernal. Assim sacrificam então suas almas e terminam no podredouro” [MANN, Thomas. Doutor Fausto. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 694-5].
Claro que desta passagem poderia derivar-se o possível problema de consciência decorrente do sacrifício dos escrúpulos em nome do sucesso, especialmente econômico, no seio de uma sociedade eminentemente competitiva, como é a sociedade ocidental, e que foi divisado como traço essencial do capitalismo por quantos se debruçaram sobre este tema, seja tomando posição favorável ou crítica, seja simplesmente descrevendo o respectivo funcionamento [FARIA, Werter Rotumno. Constituição Econômica – liberdade de iniciativa e de concorrência. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1990, p. 108; SOUZA, Washington Peluso Albino de. Teoria da Constituição Econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 434-5].
Aliás, a própria percepção de que os poderes desregrados tendem a destruir tudo o que se interponha entre a vontade do respectivo titular e a realização desta, aplicada também ao campo econômico, justifica os balizamentos jurídicos também para o setor privado [BAPTISTA, Luiz Olavo. Empresa transnacional e Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986, p. 32], algo que não é negado nem mesmo pelo principal defensor da adoção do mercado como medida de todas as coisas:
“O modelo da concorrência perfeita baseia-se na presunção de fatos que só existem em alguns setores da vida econômica e que não seríamos capazes de criar em muitos outros que, por vezes, seria indesejável que o fizéssemos” [HAYEK, Friedrich August von. Direito, legislação e liberdade. Trad. Henry Maksoud. São Paulo: Visão, 1985, v. 3, p. 70].
Por mais interessante e tentadora que seja tal derivação, especialmente para o juseconomista, parece-me que se poderia também, para os efeitos de nos mantermos fieis ao enfoque a ser dado ao romance, no parágrafo que foi transcrito divisar a desesperança final de quem, obtendo a ilusão de onipotência, buscou a máxima afirmação do EU, ainda que a preço da perdição, assim como pessoas, em nome do afastamento de um “ismo” indesejado, que foi mais tarde sendo substituído por outros inimigos, e com a promessa de um futuro glorioso, “deixam o Céu por ser escuro e vão ao Inferno à procura de luz”, como diz o verso de Lupicínio Rodrigues em sua canção de 1948 intitulada “Esses moços, pobres moços”, relativizando os limites inerentes ao Estado de Direito, liberando as fúrias sem sequer desejarem pesar as consequências disto, de tal sorte que defendem damas, combatem demônios, mandam à fogueira apóstatas, canonizam os seus heróis [SCHMITT, Carl. Teologia política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 57], sem sequer entenderem do que falam e o que fazem, até que as fúrias que liberaram corram o real risco de se abaterem sobre elas, atiram-se à perdição de bom grado, como o faz Adrian Leverkünh, pretextando assistir à estreia austríaca da Salomé, de Richard Strauss, em Graz, e, na realidade, buscando encontrar uma meretriz com a qual deixara, entretanto, de consumar o ato que custaria a sua alma:
“Viajou sozinho, e não se pode precisar, com certeza, se executou o seu pretenso propósito e se encaminhou de Graz a Pressburg, ou talvez de Pressburg a Graz, ou apenas fingiu ter estado em Graz, limitando-se à visita a Pressburg, a Poszony húngara. Pois aquela cuja carícia ele trazia consigo viera parar numa casa dessa cidade, já que tivera de sair do lugar onde antes exercia seu ‘ofício’ em virtude de uma hospitalização. Foi no novo domicílio que o obcecado a encontrou” [MANN, Thomas. Doutor Fausto. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 216-7]
A perdição consciente da alma, buscada por Leverkühn, preferindo os riscos da doença e da loucura à frustração de seus desejos – algo que já o põe, de saída, como um anti-Parsifal, já que o herói homônimo do drama wagneriano chega inconscientemente ao Jardim das Delícias de Klingsor, e, ao tornar-se consciente, sentindo a mesma dor de Amfortas, rejeita a sedução de Kundry -, como a perdição consciente, buscada pelos cultos alemães, preferindo cair na barbárie e no arbítrio a ter de amargar tanto a humilhação da derrota na Primeira Guerra quanto o próprio perigo do bolchevismo.
Ao contrário do Estado de Direito, que tanto liberais como Thomas Mann quanto social-democratas como Hermann Heller procuraram salvar, em virtude de nele ser essencial a previsibilidade das condutas como o meio mais eficaz que se conhece para tornar possível a liberdade individual [TELLES JÚNIOR, Goffredo da Silva. Iniciação à ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 364-5], o que valeria no seu substituto seria o são sentimento do povo, entendido como “povo” o conjunto dos “seres superiores”, como critério de justiça, rompendo com a visão do Estado não se confundindo com o conjunto de indivíduos detentores do poder, “mas como um conjunto de instituições, ou seja, de entidades estáveis e permanentes das quais tais indivíduos não são mais do que elementos mais ou menos jungíveis, de maneira que continuam na sua individualidade e continuidade, não obstante a substituição das pessoas físicas por meio das quais funcionam” [ROMANO, Santi. Princípios de Direito Constitucional geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 198].
Basta a distribuição de rótulos, neste caso, para se verificar se é o caso de reconhecer direitos ou prescrever deveres ao indivíduo, a conduta se torna absolutamente irrelevante.
Nas mínimas coisas, a distribuição de rótulos faz emergir a ideia da presença do inimigo a ser destruído entre nós, inimigo, este, que traduz, também, o motivo para que se desenvolvam, entre os “amigos”, esforços em comum [KARNAL, Leandro. O ódio nosso de cada dia. O Estado de São Paulo. São Paulo, 1 nov 2014, in: < http://m.alias.estadao.com.br/noticias/geral,o-odio-nosso-de-cada-dia,1586401>,  acessado em 1º maio de 2016; GONÇALVES, Vanessa Chiari. Tortura e cultura policial no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 187; SCHMITT, Carl. Teologia política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 76].
Eis um retrato dos rótulos que se desferiam na República de Weimar ao que parecesse ofensivo a ouvidos conservadores:
“Tenho em mente o terceiro decênio do nosso século, e em especial, naturalmente, a sua segunda metade, que trouxe consigo, sem exagero, o deslocamento do foco cultural da França para a Alemanha. Era deveras altamente significativo o fato de ter-se realizado a essa altura, como aliás já mencionei, a estreia mundial – ou mais exatamente, a primeira apresentação completa – do oratório apocalíptico de Adrian Leverkühn. É escusado dizer que, muito embora o centro dos acontecimentos fosse Frankfurt, um dos centros mais benevolentes e progressistas do Reich, ele não era recebido sem furiosa hostilidade. Ouvia-se a exasperada acusação de escárnio à Arte, de niilismo, de crime contra a Música, ou para empregarmos a mais corriqueira invectiva daqueles dias, de ‘bolchevismo cultural’. Porém a obra e o intrépido empreendimento de sua execução encontraram defensores tão inteligentes quanto fecundos” [MANN, Thomas. Doutor Fausto. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 542].
Num Estado de Direito, a discussão acerca do papel das artes, se voltadas a uma função pedagógica, se voltadas à propaganda de uma causa, se voltadas a demonstrar perícia ou se voltadas a deleitar os sentidos, tem plena pertinência, pois decorreria da compreensão que o próprio artista tivesse acerca da arte por ele cultivada [BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: UNESP, 1997, p. 100].
Embora, mesmo num contexto democrático, não se possa cair na tentação de sustentar que o terreno da cultura seja totalmente infenso à atuação estatal, até porque os valores têm nela sua origem [MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 657; CHAVES, Antonio. Criador da obra intelectual. São Paulo: LTr, 1995, p. 36], é nas experiências de onipotência que se atribui às artes, compulsoriamente, ou o caráter “engajado” – entendendo-se como tal tanto a arte voltada a fins pedagógicos quanto a voltada à propaganda de uma causa -, como se verificou na URSS [MONDAINI, Marco. O grande terror no comunismo soviético. In: PINSKY, Jaime & PINSKY, Carla Bassanesi (org.). Faces do fanatismo. São Paulo: Contexto, 2004, p. 163], ou o caráter “escapista” – entendendo-se como tal tanto a arte voltada exclusivamente a demonstrar perícia ou a deleitar os sentidos -, como ocorreu na Europa logo após o Congresso de Viena [REIS, Luís Neri Pfützenreuter Pacheco dos. Winterreise: o processo de construção a dois. Curitiba: Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná, 2010, p. 18 (dissertação de mestrado)].
Tanto os burocratas de Estaline quanto os de Hitler, em relação a tendências estéticas indesejáveis, classificavam-nas como “decadentistas”.
Pode-se notar, outrossim, que a própria Arte vem a ter exacerbado o seu caráter de deleite dos sentidos quando passa da fase “artesanal” para a “industrial”, de tal sorte que o “artístico” vem a se identificar com o que pouco exige do público para a compreensão e apreciação [CAMARGO, Ricardo Antonio Lucas. O capital na ordem jurídico-econômica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 230-1].
Modo certo, fora do Estado de Direito, os que se tomam como indesejáveis não serão perseguidos e punidos em razão de algo que façam, mas sim em razão de convicções ou pertinência a grupos tidos como “daninhos”, compostos por “inimigos”, e o mal-estar que venham a suportar será justificado mediante apelos fáceis a dados de afetividade, “slogans”, e na medida em que possam servir de escarmento para eventuais rebeldes e de divertimento para os beneficiários do sistema, não será decorrente da comprovação da prática de um ato delituoso, nem será aplicada na forma da lei [CARNEIRO, Maria Luíza Tucci. A era nazi e o anti-semitismo. In: PINSKY, Jaime & PINSKY, Carla Bassanesi (org.). Faces do fanatismo. São Paulo: Contexto, 2004, p. 125].
Quer dizer, fora de um Estado de Direito, a própria aplicação das sanções converte-se em meio de deleitar os sentidos, ao invés de recompor o equilíbrio social rompido pela violação da lei [GONÇALVES, Vanessa Chiari. Tortura e cultura policial no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 197].
O tema da Arte enquanto mero deleite dos sentidos ou como ruptura das limitações em que se põe o ser humano na caverna platônica foi apresentado pelo personagem de Thomas Mann que faria “pendant” a Gurnemanz, diante do anti-Parsifal Adrian Leverkühn:
“Kretzschmar apresentava ainda vários gracejos pitagóricos dessa espécie, que mais visavam os olhos que os ouvidos, e nos quais a Música sempre se comprouvera. Revelava que, em última análise, os atribuía a certa assensualidade e até antissensualidade, inerentes à Música, com seu certo pendor pelo ascetismo. Era ela realmente a mais espiritual de todas as artes, o que já se manifestava no fato de forma e conteúdo, entrelaçados nela mais que em nenhuma outra, serem simplesmente uma e a mesma coisa. Dizia-se, na verdade, que a Música 'se dirige ao ouvido', mas que faz isto relativamente, na medida em que o ouvido, como os demais sentidos, for órgão mediador e recipiente do espiritual. Talvez - disse Kretzschmar - seja o mais íntimo desejo da Música não ser ouvida, nem tampouco ser vista ou sentida, e sim, se possível, ser percebida e enxergada unicamente num alem dos sentidos e até da alma, numa região espiritualmente pura. Mas, estando ligada ao mundo dos sentidos, também cabe a ela almejar a mais forte, a mais sedutora sensualização, como uma Kundry, que, sem desejar o que faz, enlaça o pescoço do Tolo com os braços macios da volúpia” [MANN, Thomas. Doutor Fausto. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 90].
Kretschmar, o Mestre de Leverkühn, chega a qualificar a música como uma Kundry, à espera de um Parsifal, o “Tolo Inocente tornado Sábio pela compaixão”, que atalhe o seu caminhar errático entre o Jardim das Delícias e o Castelo do Graal.
Um dado interessante é que, a despeito de haver composto para o teatro lírico, Leverkühn rejeita Wagner, ou o vê com reservas.
Embora seu sistema musical se aproxime do de Schönberg, seu anti-wagnerianismo é franco [SCHNEIDER, Wolfgang. Mann and his musical demons. In: < http://www.signandsight.com/features/1440.html>, acessado em 7 jul 2016], e a adversativa se impõe porque constitui praticamente um consenso a ultrapassagem, por parte do gênio de Bayreuth, dos limites do tonalismo, cuja ideia é sempre a de conduzir a um repouso final, a uma certa estabilidade após um período de movimentação [BORGES, Maryson José Siqueira. A música demoníaca de Adrian Leverkühn como síntese da danação romântica da arte moderna. Pandaemonium Germanium.  no.15 São Paulo  2010. In: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1982-88372010000100006 , acessado em 7 de julho de 2016; SOUZA, Gustavo Ramos de. A fortuna crítica de Thomas Mann no Brasil: Carpeaux e Rosenfeld. Em Tese. Belo Horizonte, v. 21, n.1, p. 126, jan/abr 2015].
Bem assim a falta de entusiasmo de Serenus Zeitblom com Wagner e o entusiasmo com a música do amigo.
Para o compositor Flo Menezes, no colóquio sobre o romance, isto não seria de surpreender, pois “a música do final do século XIX, depois de Wagner, é, necessariamente, wagneriana, da mesma forma como, justamente por isso, é em grande parte também anti-wagneriana. Brahms, na corrente ‘oposicionista’ e tido por muitos como um ‘clássico’ dentre os românticos, é por diversas vezes mais revolucionário que o próprio Wagner. Sua obra é, vista como um todo, mas também em detalhes, maior que a de Wagner, e é mais a ele que a Wagner que se reporta comumente Schönberg!” [Thomas Mann – atualidade da obra “Doutor Fausto” no campo da política, da literatura e da música. In: < http://beta.brasa.art.br/ibap/1322-2/>, acessado em 1º de maio de 2016].
Entretanto, não parece presente um paradoxo, pela aparente analogia da renúncia do amor em prol da ambição, próprias tanto a Alberich quanto a Klingsor?
A própria redenção pelo amor, afastada quando morre Nepomuk, o adorável sobrinho de Leverkuhn, o único ser a quem este amara verdadeiramente, totalmente desinteressado de si?
Visualizo fortíssima influência de Wagner na própria construção deste romance, como na de muitas outras obras de Mann. Assim como Wagner, em sua conhecida megalomania, buscou a “Obra de Arte total” [OLIVEIRA, Sidnei. O Beethoven, de Wagner, em O nascimento da tragédia, de Nietzsche. Guarulhos: Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo, 2013, p. 96-7 (dissertação de mestrado)], com a fusão de todas as artes, Mann escreveu, aqui, um romance no qual a música é quase personagem, e em várias dimensões [BRAGION, Alexandre Mauro. A música do diabo: aspectos musicais no Fausto de Thomas Mann. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, 2013, p. 53 (tese de doutoramento)]: na extrema racionalidade e, ao mesmo, tempo, sensibilidade de Kretschmar, no ascetismo demoníaco de Leverkühn (traduzido na renúncia ao amor, em função da carreira, e a redução da experiência amorosa ao sexo comercial - a Hetaera Esmeralda -), na futilidade do violinista donjuanesco Rudolf Schwerdtfeger que será, mais tarde, morto a tiros por Inês Institoris, uma das suas vítimas mais tímidas, a subtração da própria possibilidade de redenção da alma perdida, com a morte do pequeno Nepomuk, o “Eco” [CAMPOS, Beatriz Schmidt & BARBOSA, Sidney. A trajetória musical de Adrian Leverkühn delineada no romance Doutor Fausto, de Thomas Mann. Revista Athena. Cáceres. 8, n. 1, p. 43-4, 2015, in: http://periodicos.unemat.br/index.php/athena/article/view/1176/1249, acessado em 7 jul 2016], que não deixa de remeter a um outro personagem antípoda de Fausto, qual seja, o menino que morre por se recusar a ceder às tentações do mefistofélico rei dos Elfos no poema de Goethe de 1782, musicado por Schubert em 1815.
O pequeno moribundo teme ser levado por ele ao seu reino, embora o pai o resguarde firme e quente, e tente mostrar-lhe que os melífluos convites da maligna criatura mais não são que os exageros da imaginação infantil em face de fenômenos naturais, numa fria noite de inverno:
“Quem cavalga tão tarde pela noite e ao vento?
É o pai com o seu filho;
Ele segura a criança bem nos braços,
Segura-o com firmeza, mantém-no quente. 
‘Meu filho, por que escondes tão receoso teu rosto?’
‘Pai, não vês o Rei dos Elfos?
O Rei dos Elfos com coroa e cauda?’
‘Meu filho, é um fio de névoa.’
‘Tu, querida criança, vem comigo!
Maravilhosos jogos eu jogarei contigo,
Na praia há muitas flores coloridas,
A minha mãe tem várias túnicas douradas.’
‘Meu pai, meu pai, não ouves
O que o Rei dos Elfos baixinho me promete?’
‘Calma! Sossega, meu filho,
O vento é que murmura nas folhas secas.’
‘Queres, belo garoto, vir comigo?
As minhas filhas te farão a corte;
Minhas filhas conduzem a dança noturna,
E embalarão, dançarão e cantarão para adormeceres’.
‘Meu pai, meu pai, não vês ali
As filhas do Rei dos Elfos no local sombrio?’
‘Meu filho, meu filho, eu vejo perfeitamente:
São os velhos salgueiros de cor cinzenta.’
‘Eu amo-te; encanta-me a tua linda figura,
E se não vieres por bem, eu usarei da força.’
‘Meu pai, meu pai, ele agarra-me agora,
O Rei dos Elfos machucou-me!’
O pai estremece, ele cavalga rapidamente,
Ele segura nos braços a criança gemente,
Com muito custo à fazenda ele chega.
Nos seus braços a criança jazia morta.”
[GOETHE, Johann Wolfgang. O rei dos Elfos. Trad. Francisco José dos Santos Braga. In: BRAGA, Francisco José dos Santos.  Erlkönig (rei dos Elfos) de Schubert. In: http://www.concertino.com.br/cms2/files/Erlknig.pdf, acessado em 4 jul 2016].
O tema do sacrifício da inocência, diante da impotência daquele que a deveria guardar, é frequente na literatura romântica – o grande rival de Wagner no teatro lírico, Giuseppe Verdi, musicou o drama O rei se diverte, de Victor Hugo, rebatizando-o para Rigoletto, e explora, efetivamente, o tema, com a morte de Gilda -, e não deixa, num certo sentido, de se reportar a temas como o “sacrifício de Ifigênia”, entre os gregos, o “sacrifício da Filha de Jefté”, entre os hebreus, e tantos outros de cunho religioso que apareciam na Antiguidade [BAYON, Fernando. Thomas Mann y el desencantamiento de las tradiciones alemanas. www.raco.cat/index.php/HMiC/article/download/22079/21914, acessado em 7 jul 2016].
Enquanto Parsifal é o “inocente triunfante”, tanto Nepomuk quanto a criança do poema O rei dos Elfos representam o papel do “inocente destinado ao sacrifício”.
No poema de Goethe, ora evocado, também se exprime o embate da Razão Reflexiva e Perscrutadora, própria do espírito clássico-iluminista, e do Medo do Desconhecido e do Diferente, presente na Idade Média revalorizada pelo romantismo (visto, goethianamente, como doentio [STEGMEIER, Werner. O pessimismo dionisíaco de Nietzsche: interpretação contextual do aforismo 370 d’ A gaia ciência. Estudos Nietzsche. Curitiba, v. 1, n. 1, p. 42, jan/jun 2010]), Medo, este, que está na raiz de todos os fanatismos, especialmente o que conduziu à realização de autos-de-fé, inclusive no III Reich.
No caso desta última interpretação – francamente possível, dado o caráter ambíguo do poema [NOWINSKA, Magdalena. A intertextualidade no processo da tradução literária. In: http://www.abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/079/MAGDALENA_NOWINSKA.pdf, acessado em 4 jul 2008] -, o paralelo entre a criança e o pai do poema de Goethe já não se dá com Nepomuk e Leverkühn, mas sim com Leverkühn, cercado pelos horrores de um episódio que não se sabe se, no contexto do romance, efetivamente ocorrido ou decorrente de sua consciência culpada por conta do episódio com a prostituta Esmeralda, e Serenus Zeitblom [BRAGION, Alexandre Mauro. A música do diabo: aspectos musicais no Fausto de Thomas Mann. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, 2013, p. 179-180 (tese de doutoramento); CAMPOS, Beatriz Schmidt & BARBOSA, Sidney. A trajetória musical de Adrian Leverkühn delineada no romance Doutor Fausto, de Thomas Mann. Revista Athena. Cáceres. 8, n. 1, p. 44, 2015, in: http://periodicos.unemat.br/index.php/athena/article/view/1176/1249, acessado em 7 jul 2016].
“Segundo Mann, esta determinante presença romântica na alma alemã, como uma espécie de eco intermitente da índole subjetivista desta nação, se traduzirá, na crise estética da arte moderna, em música dodecafônica e, na crise sócio-política da República de Weimar, no nacional-socialismo. Claro que não se trata de associar a questão romântica de maneira determinista nem ao nazismo nem à música serial. O que Mann concebe como o ônus romântico no desenvolvimento destes eventos é o fato de ele ser para a Alemanha ainda o grande catalisador, a expressão fiel e contundente, de uma série de valores subjetivistas e interiorizantes que dizem respeito ao caráter e anseio introspectivo de sua burguesia, mas que pouco contribuem para a necessidade de integração social mútua desta nação com os outros países da Europa e para a instauração nela de uma coletividade mais humanista. Mann critica, por isso, o pacto de conveniências fundado sobre a manipulação anacrônica de alguns destes valores românticos. Segundo sua concepção, neste pacto, a classe política, ao se apoderar do sentido místico-nacionalista da atitude romântica, afere ao fascismo emancipatório do anti-semitismo nazista a historicidade justificadora de seu isolamento e de suas ações imperialistas, enquanto os artistas e os intelectuais, inebriados pelo orgulho romântico do germanismo que se exalta, abrem mão de uma reflexão crítica mais aguda, numa resignação muda diante do caos social que se anuncia, em nome de uma estada tranqüila no mundo etéreo e ideal das elucubrações estéticas e filosóficas” [BORGES, Maryson José Siqueira. A música demoníaca de Adrian Leverkühn como síntese da danação romântica da arte moderna. Pandaemonium Germanium.  no.15 São Paulo  2010. In: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1982-88372010000100006 , acessado em 7 de julho de 2016]
Com efeito, a morte de Nepomuk acende em Leverkühn a certeza de que sua perdição é irreversível, e qualquer consolo que lhe queira dar o amigo Zeitblom é inútil, e então, sente-se imbuído da sua condição de alma voltada ao Demônio:
“- Leva-o, monstro! – exclamou numa voz que me penetrava até a medula –Leva-o, patife, mas faze-o logo, já que não quiseste tolerar nem isso, velhaco que és! E eu pensara – continuou, dirigindo-se subitamente a mim, num murmúrio confidencial e dando um passo para a frente –, eu pensara que ele toleraria isso, só isso, talvez. Mas não! De onde lhe viria a graça, a ele, o desgraçado? E justamente isto, ele o triturou com seus pés, com sua fúria bestial! Leva-o, animal abjeto! – gritou, distanciando-se novamente de mim, como se fosse em direção à cruz. – Leva seu corpo, sobre o qual tens poder! Mesmo assim, terás de deixar em paz sua doce alma. Eis o que te torna impotente e ridículo. Ainda que eternidades inteiras se acumulem entre o meu lugar e o seu, saberei sempre que ele se encontra lá de onde te enxotaram, porcalhão, e isso será para mim uma água balsâmica, um hosana com que escarnecerei de ti na minha mais baixa perdição!” [MANN, Thomas. Doutor Fausto. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 664].
A Música já foi tratada como análoga ao Direito, porque ambos teriam como característica comum viverem a partir da interpretação dos respectivos “textos” para se fazerem vivos, embora, quanto ao Estado de Direito, possa ser realizada, também, outra comparação: a divisão de trabalho entre o “compositor” e o “intérprete”, entre o dotado de funções nomogeradoras e o dotado de funções de interpretação e aplicação do texto normativo.
Assim como, por maiores que sejam as liberdades do intérprete musical, a utilização das indicações da partitura não podem deixar de ser seguidas, sob pena de, ao invés de estar a executar obra alheia, ele venha a estar a criar obra própria, o intérprete dos textos normativos, por maior que seja a liberdade que tenha em optar por um dos seus sentidos possíveis, quando foge do referencial dado, assume a condição de elaborador originário do texto normativo, de criador do texto normativo geral e abstrato em caráter inovatório [GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 46-7; KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 270-1].
As relações entre as notas na melodia já foram utilizadas como dado de analogia para demonstrar que as relações de poder estariam fundamentadas na natureza das coisas [ARISTÓTELES. A política. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: UnB, 1997, p. 18-9], embora, no próprio âmbito musical, mesmo quando se tome um contexto de escalas dominadas por uma nota fundamental, seja no sistema modal, seja no sistema tonal, só para ficarmos na experiência do Ocidente, todas as notas são vocacionadas a governarem a melodia, assim como, num regime democrático, todas as correntes de pensamento, inclusive as que s antagonizam com a própria ideia de democracia – não esqueçamos que Hitler, Mussolini, Salazar, não foram guindados às posições que ocuparam por processos violentos, mas sim dentro dos caminhos institucionais [BONAVIDES, Paulo. Ciência política. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 123] -, teriam a respectiva oportunidade de participar da definição do ordenamento jurídico.
Outra comparação importante: a adequação do instrumento à melodia que se queira executar, tal como a adequação do instrumento processual à pretensão que se queira deduzir, traduzindo-se na acepção mais tradicional do “devido processo legal”.
Quanto ao caminhar errático da Música, qual Kundry, entre o Jardim das Delícias e o Castelo do Graal, não deixa, em si mesmo, de remeter, também, ao caminhar errático da humanidade entre períodos em que se cai num plano em que tudo é permitido de acordo com o que a afetividade de quem for dotado de mais força possibilitar e outros em que se sabe, precisamente, os termos em que cada qual tem a sua esfera de atuação juridicamente protegida; no âmbito econômico, temos as oscilações entre a prevalência dos embates de interesses individuais no mercado e a atuação do Estado sobre e no domínio econômico, que se pode dar desde uma simples correção de desequilíbrios até a direção, mesmo, dos rumos da economia [SOUZA, Washington Peluso Albino de. Teoria da Constituição Econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 2002, p. 415].
A própria Hetaera Esmeralda, na equação inversa Kundry-Parsifal, procura, ainda, inutilmente, dissuadir Leverkühn de seu intento, procura evitar a perdição da alma do protagonista:
“Não há dúvida de que ela se lembrava do fugidio visitante daquela noite. Sua aproximação, o ato de tocar-lhe a face com o braço nu talvez houvessem sido sua maneira humilde, terna, de expressar que compreendia tudo quanto o distinguia do resto de sua clientela. Da boca dele soube a mulher que a viagem a Pressburg fora feita por sua causa – e, para demonstrar-lhe sua gratidão, acautelou-o contra seu próprio corpo. Sei disso, porque Adrian me contou: ela o acautelou, e não equivale essa advertência a uma simpática prova da diferença que existe entre a humanidade superior de um ser e sua parte física, caída na sarjeta e aviltada à condição de mero utensílio? A desventurada acautelou contra ‘si mesma’ a quem a desejava, e isso representou um ato de livre elevação da alma acima de sua existência carnal, um ato de distanciar-se humanamente de tal situação, um ato de comoção, um ato de – permitam-me tal palavra – amor. [...] A pobre moça deve ter se sentido purificada, justificada, engrandecida e feliz, pelo fato de que o homem vindo de longe recusava, apesar de qualquer perigo, renunciar a ela, e parece que recorreu a todos os doces encantos de sua feminilidade para recompensá-lo de tudo quanto ele arriscava por sua pessoa” [MANN, Thomas. Doutor Fausto. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 217-8].
Recordemos que Parsifal, o tolo inocente tornado sábio pela compaixão, salva, redime Kundry, ao rejeitar a sua sedução, no drama wagneriano, diferentemente de Leverkühn, o gênio tornado tolo pelo desejo, que se deixa perder ao procurar Esmeralda e rejeitar suas advertências.
Quanto às Ciências, num Estado de Direito pretende-se que elas se guiem pela fidelidade do pesquisador ao respectivo objeto de pesquisa, de tal sorte que o resultado se mostra indiferente a que se agradem ou não os eventuais superiores hierárquicos do pesquisador.
Isto não significa, é certo, a “imaculada concepção” da Ciência, já que se sabe o papel que as exigências do mercado desempenham no desenvolvimento de meios que agilizem o ingresso de receitas ou as do próprio Poder Público no sentido de incremento do funcionamento da máquina pela qual se manifesta [BERTALANFFY, Ludwig von. Teoria geral dos sistemas. Trad. Francisco M. Guimarães. Petrópolis/Brasília: Vozes/Universidade de Brasília, 1975, p. 80]; significa, sim, o reconhecimento de que a Ciência, com ou sem atrelamento à viabilização de outras atividades, somente encontra terreno para expandir-se, com a compreensão de que daqueles que a ela se dedicam não se pode exigir a infalibilidade, justamente porque não atuam, nesta condição, em nome de potestades transcendentes, de caráter onisciente, onipotente e onipresente, no seio do Estado de Direito; justamente porque não há o atrelamento obrigatório é que se recorda que “o que confere à verdade factual a natureza de uma verdade efetiva é que os fatos ocorreram de uma determinada maneira e não de outra” [LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos – um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 247].
Agora, no conturbado contexto em que as pessoas médias apelavam a que os homens de pensamento apresentassem a solução para seus problemas, desde que dissessem aquilo que queriam ouvir e não o que realmente percebessem, com toda a honestidade, era comum conferir credibilidade apenas ao que bajulasse o público.
Trata-se da tendência a pretender domesticar o próprio homem de pensamento, pela respeitabilidade de sua posição, reduzindo-o, entretanto, à condição de mero legitimador dos anseios das facções, sob a paradoxal pena de descrédito [BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder. Trad. Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: UNESP, 1997, p. 126].
O próprio processo educacional é visto, neste contexto de irracionalidade e culto da força, como “destinado a servir a certos valores e pressupõe, portanto, a existência de valores sobre alguns dos quais a discussão não pode ser admitida” [CAMPOS, Francisco. Diretrizes constitucionais do novo Estado brasileiro. Revista Forense. Rio de Janeiro, v. 35, n. 73, p. 20, jan/mar 1938].
Tal, aliás, a visão que é defendida pelo círculo capitaneado pelo poeta Daniel Zur Höhe, a cuja casa comparece o narrador Zeitblom:
“A imparcialidade da pesquisa, o pensamento livre, longe de representarem o progresso, pertenciam a um mundo retardado, desinteressante. Concedia-se ao pensamento a liberdade de legitimar a força, assim como, uns setecentos anos atrás, a razão tivera liberdade para discutir a fé e demonstrar o dogma” [MANN, Thomas. Doutor Fausto. Trad. Herbert Caro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 515].
O Professor Jorge de Almeida, no diálogo sobre o romance, fez a seguinte observação:
“No caso do Doutor Fausto, lembremos que o romance foi escrito no exílio durante a Segunda Guerra, enquanto Mann participava ativamente do esforço de propaganda anti-nazista e o resultado do conflito ainda era incerto. Mas a grande diferença ocorre na escolha de um narrador em primeira pessoa, Serenus Zeitblom, mestre escola alemão classicista e humanista, que por conta de sua visão de mundo apresenta a vida de Leverkühn a partir de uma perspectiva de certo modo ‘ingênua’ e incompleta. O jogo temporal entre a necessidade de compor as memórias do amigo e o embate, em tempo real, com as batalhas e bombardeios da guerra cria ainda um outro deslocamento. Esses desencontros atingem o ápice no final do livro, com a derrota da Alemanha, a visita ao campo de concentração e as dúvidas que abalam Serenus, incapaz de manter sua ‘serenitas’ clássica diante do horror” [Thomas Mann – atualidade da obra “Doutor Fausto” no campo da política, da literatura e da música. In: < http://beta.brasa.art.br/ibap/1322-2/>, acessado em 1º de maio de 2016].
Neste comentário, interessante se mostra a ideia de a atribuição ao narrador do nome “Serenus” decorrer da busca da Serenitas, almejada por um dos principais pensadores do início da República de Weimar, Max Weber, de quem o Dr. Carl Schmitt [Teologia política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 142] pegou o gosto pela tipologia. Schmitt, porém, ao contrário de Weber, hostilizado pelos direitistas por se opor ao assassinato dos espartaquistas [SOLON, Ari Marcelo. Teoria da soberania como problema da norma e da decisão. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997, p. 179], entregar-se-á de corpo e alma à construção da teoria constitucional do III Reich [BONAVIDES, Paulo. Ciência política. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 127-8].
O bom católico Schmitt, qual Leverkühn, vendendo a alma ao Diabo, aparece como um “irmão espiritual” de Francisco Campos, autor tanto da Constituição brasileira de 1937 como do Ato Institucional de 9 de abril de 1964 [MENEZES, Daniel Francisco Nagao. Francisco Campos, Carl Schmitt e a atuação do Estado na economia. São Paulo: Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2013, p. 168-170 (tese de doutoramento); RAMALHETE, Clovis. Revolução como fonte do Direito. Revista de Direito Público. São Paulo, v. 7, n. 32, p. 101, nov/dez 1974; SESTA, Mário Bernardo. As Constituições do Brasil. In: SESTA, Mário Bernardo [org.]. Direito Constitucional. Porto Alegre: CEUE, 1962, t. 1, p. 12].
Weber pode ser retratado como Kretschmar, como a influência positiva que Schmitt, no entanto, arredou, do mesmo modo que Leverkühn.  Já houve uma comparação entre Leo Naphta, personagem de outro romance de Thomas Mann, A montanha mágica, e Schmitt, feita pelo Professor Ari Marcelo Solon [Teoria da soberania como problema da norma e da decisão. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997, p. 184].
Todos os temas aflorados ao longo desta fala mostram relações entre passagens da obra escolhida e a questão da necessidade de se preservar o Estado de Direito, qualquer que seja a respectiva manifestação, seja como liberal, social, democrático, como for. Thomas Mann foi testemunha do voluntarismo triunfante e triunfalista na culta Alemanha, eu mesmo fui contemporâneo de eventos como o cerco ao Largo São Francisco, de que decorreu a redação e leitura da Carta aos Brasileiros do Professor Goffredo da Silva Telles Júnior, do atentado à sede da OAB e ao Riocentro, do bloqueio dos cruzados novos, das privatizações a toque de caixa, dentre outros. Tudo temos a temer quando secundarizamos a importância do Estado de Direito em nome de conveniências atuais e contingentes. Thomas Mann demonstrou isto em várias passagens do seu romance, que não teria como ser escandido aqui por falta de tempo. Hoje, a questão é trazida, aqui, porque absolutamente necessária nos tempos em que estamos vivendo, superando, outrossim, os termos reducionistas em que se colocam as facções em combate.

ALMEIDA, Jorge de. Thomas Mann – atualidade da obra “Doutor Fausto” no campo da política, da literatura e da música. In: < http://beta.brasa.art.br/ibap/1322-2/>, acessado em 1º de maio de 2016
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