terça-feira, 8 de janeiro de 2013

O simbolismo do ouro no Anel do Nibelungo

Uma interpretação simplista que se procura dar ao Anel do Nibelungo, exatamente em função do ouro, para se identificar em Wagner o pai da Alemanha nazista, é o de uma metáfora a respeito do judaísmo.

Isto porque o ouro, no imaginário popular, pode ser associado à figura do judeu que empresta dinheiro a juros e não recua, de modo algum, em aproveitar-se da necessidade alheia para tiranizar o próximo.

Uma outra interpretação, bastante próxima desta, é a que localiza no ouro uma alegoria da competição capitalista.

Outra, ainda, descendente da anterior, estabelece analogia com a luta de classes, representando os deuses a classe dominante e os nibelungos e os gigantes a classe dominada.

Tais interpretações, embora perfeitamente sustentáveis e fundamentadas, não me parecem esgotar todo o simbolismo do ouro na Tetralogia.

É indubitável que o ouro está relacionado com a idéia de poder, e isto é explicitado pelas próprias filhas do Reno na primeira cena do Ciclo.

A vontade de obter o ouro, então, é a materialização da própria vontade de poder, de ter o comando sobre o mundo inteiro.

Neste caso, não é apenas do poder econômico que se ocupa o Ciclo, mas do poder em si mesmo: o poder do Estado sobre os súditos, do sacerdote sobre os fiéis, dos pais sobre os filhos etc.

Mas a vontade de poder, claramente, como afirmação total do indivíduo sobre o meio em que vive, pressupõe a renúncia a tudo o que represente dádiva desinteressada.

Daí por que somente quem renunciasse ao amor poderia subtraí-lo às filhas do Reno, assim como somente quem o devolvesse a elas sem nada esperar em troca poderia pôr fim à maldição que sobre ele pesava.

Observe-se que mais este dado a respeito do poder foi aproveitado por Wagner ao pôr na boca de Alberich: ambicionado por todos, não encontraria paz aquele que o obtivesse.

As formas de obtenção do ouro são exatamente os meios que marcam a luta pelo poder: uma dedicação total ao egoísmo, representado pela renúncia ao Amor, perpetrada tanto por Alberich quanto por Fasolt, a perfídia, de que lançam mão Alberich, Loge, Wotan, Mime e Hagen, e o assassinato, que é praticado por Fafner e por Hagen.

Até mesmo o famoso "abrir mão dos anéis para não perder os dedos" se acha presente no Ciclo: Wotan abre mão do anel pelo medo do fim dos deuses, com o que não seria válida a entrega que por ele fosse feita às filhas do Reno para escapar à maldição lançada por Alberich.

Veja-se que a sinceridade do amor de Siegfried por Brunhilde é atestada pela entrega a esta do anel feito do ouro do Reno, conseguido pelo herói após o combate com Fafner.

Sabemos que o amor de Brunhilde por Siegfried, ao início, é bem humano e egoístico, pois ela se recusa a entregar o anel às filhas do Reno mesmo avisada por Waltraute de que um tal gesto depende a própria sobrevivência dos deuses.

Quando tal amor se converte em renúncia, quando se converte em amor desinteressado, retira o fatídico anel do dedo do cadáver do Wälsung para que retorne ao lugar de onde veio.

Diga-se de passagem que o pagão Siegfried não deixa de fazer remissão a dois heróis cristãos do Ciclo do Graal: Lohengrin e Parsifal.

Lohengrin, ao partir, entrega a Elsa um anel para que se lembre daquele que veio em seu socorro quando injustamente acusada de ter matado seu irmão.

Devemos lembrar que que a partida de Lohengrin se dá justamente porque Elsa se mostrou incapaz de o amar sem exigir nada em troca, desejou-o egoisticamente, quis que a relação se mostrasse proveitosa para ela, em suma, não a encarou como uma doação, mas sim como um escambo ("dou desde que dês").

Parsifal, tal como Siegfried, é o tolo inocente, prestes a cair na armadilha de Klingsor, o feiticeiro eunuco, cujo maior desejo é o poder sobre todas as criaturas do universo, destronando o próprio Deus [HOLLINRAKE, 1986:13].

Diferente não é o desejo de Alberich, muito menos o do filho deste, Hagen, que prepara o filtro que embota a consciência e a memória de Siegfried.

A inocência, em Lohengrin, é personificada por Elsa, tanto no sentido jurídico, de ausência de culpa, quanto no sentido psicológico, de ausência de malícia, pois cai na armadilha que lhe prepara Ortrud, que lhe desperta o desejo de exigir a Lohengrin que decline os respectivos nome e linhagem.

O ouro que jaz no fundo do Reno é para as filhas deste fonte de luz, não de riqueza.

Fonte, pois, de energia, embora esta se venha a converter, à medida em que o ser humano vai superando os limites postos pela natureza, em si mesma, em fonte de poder.

Volta, aqui, a lenda de Faetonte, filho de Helios, que, pretendendo mostrar a Epafos (filho de Zeus e Io) a sua ascendência, tomou o carro do pai e, inebriado pelo poder que tal comando representava, quase destruiu o universo, não fosse a providencial mão de Zeus, que o fulminou.

Entra, aqui, a questão do real perigo de se entregar o poder, sem o anterior preparo para o seu exercício, isto é, da não banalização da capacidade de destruir inerente à condição de poder, algo que não se liga, necessariamente, ao preparo intelectual, mas muito ao emocional.

Nas concepções de inspiração oriental, o trilhar do caminho em direção ao Eterno implica, necessariamente, arrostar com todas as más tendências latentes no interior do próprio discípulo, como também com toda a velocidade adquirida pelas forças sinistras acumuladas pela comunidade ou nação de que faça parte [ROSO DE LUNA, 1921:71].

Outrossim, mesmo intérpretes materialistas teriam um manancial fértil para explorar, já que o Anel foi escrito em plena época da Revolução Industrial, quando o uso do vapor se mostrava responsável pela aceleração da produção e da circulação de mercadorias, com o que a possibilidade de manipular a energia do vapor traduzia a própria possibilidade de manipular a própria força de trabalho de outros seres humanos.

Daí poder-se-ia conceber a luta pelo ouro como a luta pela energia capaz de multiplicar a força do braço humano e, pois, da própria capacidade de trabalho daqueles que não fossem titulares dessa mesma energia.

O papel das Filhas do Reno em face do ouro, de outra parte, muito se assemelha ao das tribos indígenas no Brasil, que conviviam com metais e pedras preciosas sem, no entanto, atribuir-lhes o valor que os civilizados europeus e os seus vizinhos dos Andes diziam que tinham.

Quando muito, davam-lhe o valor de um brinquedo, de um enfeite ou de uma fonte de energia, mas jamais de uma fonte de poder.

A luta entre os nibelungos, os deuses, os gigantes e os homens em torno do ouro poderia também alegorizar a luta entre os europeus pelo que fora extraído das Américas.

Esta conclusão está longe de ser forçada: é que Wagner confessava aos Quatro Ventos a influência que Schopenhauer tivera sobre sua obra, e, embora este último negasse quaisquer preocupações políticas, nunca deixou de verberar a aventura colonial européia, lastreada que era esta num pressuposto errôneo de superioridade dos europeus a todo o resto da humanidade [CAMARGO, 2010].

Está o Ciclo constituído de Quatro Dramas, que poderiam bem ser análogos às Quatro Idades a que se referia Hesíodo n'Os Trabalhos e os dias, introduzindo outra acepção para o ouro: a Idade do Ouro ou a Infância, a Idade de Prata, ou Guerreira, a Idade do Cobre, ou dos Comerciantes, e a Idade do Ferro, ou do Abandono [ROSO DE LUNA, 1921:281].

O início do Ouro do Reno marca o fim da Idade de Ouro e o início da Idade de Prata: a tônica da primeira cena, que é a brincadeira inocente das Filhas do Reno, é substituída por um caleidoscópio de cenas de violência, a começar pelo furto do ouro por Alberich.

Seguem-se demonstrações de força dos gigantes e dos deuses, em luta pela deusa Freya, responsável pela colheita das maçãs de ouro, que têm a propriedade de garantir a eterna juventude aos que delas se alimentam - outro ouro, pois, que os imuniza aos efeitos da passagem do tempo -.

O digno representante da Idade de Cobre é Loge, que negocia com os gigantes o resgate de Freya e consegue lograr Alberich, para dele conseguir o ouro.

A passagem da Idade do Cobre para a Idade do Ferro dá-se quando Wotan abre mão do Anel, após a profecia da deusa Erda, a Terra, que lhe diz que somente aquele que desinteressadamente devolvesse o ouro às Filhas do Reno poderia anular a maldição de Alberich.

O ouro nas mãos de Fafner, as Filhas do Reno sem o ouro, Wotan usufruindo de um esplendor que sabe ser inútil, tais as características da Idade do Ferro que se verificam ao final de O Ouro do Reno.

Em a Walkiria e Siegfried, sem sombra de dúvidas, a tônica é o heroísmo, característico da Idade de Prata.

No Crepúsculo dos Deuses estamos diante do Pacto celebrado entre Siegfried, Gunther e Hagen, das perfídias deste último, das conspirações tão características da Idade do Cobre, até chegarmos ao abandono, à dissolução final da Idade do Ferro, com a morte de Siegfried e Gunther, a peroração de Brunnhilde, a inundação do Palácio dos Gibichungs pelo Reno, a morte de Hagen, reiniciando a Idade de Ouro ao cair o anel nas mãos das Filhas do Reno.

Neste caso, poderia ser também a gravitação dos personagens em torno do precioso metal uma expressão de uma nostalgia de uma Idade de Ouro que passou e cujo retorno depende de todas as vicissitudes do ciclo de necessidades?

Um ciclo no qual tudo é dor, enquanto se for escravo do desejo, e que somente terminará se se renunciar ao próprio desejo.

Um ciclo que, aliás, não deixa de estar presente também na idéia do Eterno Retorno, decorrência do princípio da exploração da energia, tão bem explorada por NIETZSCHE [HOLLINRAKE, 1986:23; MANN, 1975:40].

Outra questão interessante, merecedora de maior aprofundamento, é a relação do ouro com o sol.

Tal como este, o ouro é fonte de iluminação do fundo das águas do Reno.

O sol é, por outro lado, o Astro-Rei, não só por ser o centro do nosso Universo - descoberta, aliás, posterior aos cultos solares - como por emanar energia que catalisa as funções vitais.

Como Astro-Rei, ocupou o sol em várias teogonias (dentre elas a egípcia) o papel de Deus dos Deuses.

Todas as personagens da Tetralogia gravitam em redor do ouro como os planetas gravitam em redor do Sol, e têm as respectivas órbitas mais rápidas, quanto mais próximos dele, mesmo na Walkiria, onde o ouro está aparentemente ausente da trama, mas subjaz ao engendramento das Walkirias e Wälsungen.

As maçãs de ouro, que somente Freya, a Deusa do Amor, pode colher, são as responsáveis pela eterna juventude dos demais Deuses, inclusive Wotan, livrando-os do destino dos mortais.

E, por outro lado, a cor do ouro aparece neste drama para caracterizar os descendentes de Wotan: tanto os Wälsungen quanto as Walkirias são loiros, e daí muitos inferiram uma mensagem de superioridade dos loiros arianos sobre as demais raças, olvidando que a própria raça dos deuses, no Anel, está fadada ao perecimento, para que uma nova ordem se instaure, não mais baseada na violência e no combate.

A proximidade excessiva com o Sol implicaria o escaldamento do planeta (e Ícaro se aproximou demais do Sol, na mitologia grega), tal como a proximidade excessiva do ouro vem a acarretar a destruição do temerário e a aproximação dos mortais aos deuses, diretamente, viria a fulminá-los (o mito grego de Sêmele ilustra esta percepção).

Na própria anatomia de Wotan, o sol vem a ser representado por seu olho sadio: ao conquistar Fricka e obter o segredo das Runas que lhe permitiria governar o mundo, perdera o olho correspondente à lua, à semelhança do Deus falcão egípcio, Horus.

As cavernas tenebrosas de Nibelheim, onde viviam os nibelungos, onde o sol jamais entrava e não havia lugar para a alegria solar do mundo das águas, somente para a dor e a angústia, equiparar-se-iam aos monumentos megalíticos que separavam o Mundo dos Vivos do Mundo dos Mortos, impedindo que estes viessem, de acordo com a tradição, a praticar ou inspirar más ações [ELIADE, 1993: p. 177].

Em termos musicais, é sumamente interessante que o tema pelo qual a aparição do Ouro é representada vem a ser empregado tanto como prelúdio de uma explosão de alegria das Filhas do Reno como no irritado comentário de Wotan às lamentações das ninfas pela perda do ouro. Ele também aparece quando Mime prepara a sua fatal beberagem, destinada a eliminar Siegfried depois que este mate o dragão que toma conta do Ouro. Vem, também, a aparecer no "Crepúsculo dos Deuses", na passagem denominada "Viagem de Siegfried pelo Reno". É um dos temas de mais fácil memorização, justamente porque consiste em um arpejo maior ascendente, no qual se ouve a quinta seguida da tônica, novamente a quinta, a tônica, a terça e a quinta na oitava acima. Tal simplicidade do tema foi apontada como correlata à simplicidade das coisas na Natureza, mesmo quando elas se tornam centrais: o valor que lhes é atribuído é que lhes imprimirá, a rigor, a marca da complexificação [RAWLINS, 2013], e merece destaque o parentesco que foi assinalado entre este tema e outros que também se caracterizariam por se comporem de arpejos diatônicos desdobrados ao longo do ciclo, como o do Arco-Íris que conduz ao Mundo dos Deuses e o da trompa de Siegfried, enquanto o retrato da inocência plena, e que exprimiriam, pois, a Natureza intocada, a substância virgem. O tema do Anel já vem a traduzir o Ouro trabalhado e convertido em símbolo do Poder de Alberich sobre a Natureza e o Mundo, e sua proximidade com o tema do Walhalla vem a caracterizar a este último, musicalmente, enquanto símbolo do Poder dos Deuses sobre o Mundo. O tema das Maçãs de Ouro, trazendo como embrião o tema de Froh, o irmão de Freya que, pela refração da luz, faz surgir Bifrost, a ponte do Arco-Íris, aponta para a ligação entre o mundo do efêmero e o do eterno, já que as Maçãs em questão é que assegurariam a eterna juventude dos Deuses e lhes permitiriam distinguir-se dos mortais [HEISE, 2013].


Bibliografia

CAMARGO, Ricardo Antonio Lucas. Vulnerabilidades e irracionalidades no coração das trevas. http://observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=591MOS001, acessado em 25 maio 2010.

ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. Trad. Fernando Thomaz & Natália Nunes. Sâo Paulo: Martins Fontes, 1993.

HEISE, Paul Brian. The wound that will never heal. http://www.wagnerheim.com/, acessado em 21 jul 2013.

HOLLINRAKE, Roger. Nietzsche, Wagner e a filosofia do pessimismo. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.

MANN, Heinrich. O pensamento vivo de Nietzsche. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Martins Editora/EDUSP, 1975.

RAWLINS, Eric. Wagner's music - the leitmotifs.  http://www.well.com/user/woodman/singthing/ring/themusic.html , acessado em 9 fev 2013,

ROSO DE LUNA, Mario. Simbología arcaica. Madrid: Pueyo, 1921.