segunda-feira, 27 de abril de 2009

Atualidade de Parsifal: a angústia, o hedonismo e o altruísmo

O drama musical, durante todo o século XX, foi tido pelo senso comum como um espetáculo datado, reservado a alguns poucos iniciados, quando não a pedantes e saudosistas. Richard Wagner, então, pelo simples dado de ter tido a má sorte de Adolf Hitler o apreciar (Everett, Derrick. Parsifal and race. http://www.monsalvat.no/racism.htm; La Guardia, Ernesto de. Ricardo Wagner en el septuagesimo quinto aniversario de su muerte. La Prensa. Buenos Aires, 9 feb 1958) - embora, como salienta o mesmo Derrick Everett, seja sintomático o banimento, pelo próprio regime nazista, do Parsifal em 1939 (http://www.monsalvat.no/banned.htm) -, tem sido menos ouvido, lido e representado do que, efetivamente, mereceria, pelo tanto de discussões que sua obra suscita mesmo dentre os que não a conhecem.
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Surge, entretanto, uma pergunta: em que, nos nossos tempos com tantas carências, estes espetáculos suntuosos, voltados a antigos mitos, podem, afinal, dizer respeito a nós? Especialmente o Parsifal, que mereceu tantas rajadas de Nietzsche, como uma capitulação de Wagner ao Cristianismo, qual se lê no Ecce Homo (Trad. Artur Morão. Lisboa: Ed. 70, 1989, p. 80)?
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No meu livro Advocacia Pública e Direito Econômico - o encontro das águas, datado de 2009, refiro o poder metafórico que aparece neste drama musical de 1882 - ou, como Wagner o definiu, neste Festival Sagrado -: aparecem as angústias de Kundry, Titurel e Amfortas como algo absolutamente desprovido de importância para quantos tenham como máxima aspiração a fruição plena das delícias do Jardim de Klingsor. Kundry angustia-se por servir ora aos Cavaleiros do Graal, ora a Klingsor? Titurel angustia-se porque a obra por que dera a vida não terá continuidade, tendo em vista a queda de Amfortas? Amfortas angustia-se porque a confiança que nele fora depositada foi traída diante de uma promessa de fugaz felicidade? Que importa tudo isto, diante do Jardim das Delícias?
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Claro que o leitor me perguntará se estes dados não pertencem à ficção. E eu responderei que isto, para se prosseguir na discussão dos temas por eles suscitados, é o que menos importa. O que interessa, a bem de ver, não é nem mesmo a narrativa em si, mas a questão que coloca.
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A origem das angústias dos personagens vem a se colocar em causas que se encontram no nosso cotidiano: a de Kundry é a de quem quer que tenha dúvidas a respeito de quem deve ser o destinatário da lealdade, a de Titurel é a da durabilidade da obra a que uma vida inteira é dedicada, a de Amfortas é a daquele que, por fraqueza, traiu as esperanças que nele eram depositadas. Amfortas não tem dúvidas acerca de quem é o credor de sua lealdade, mas cai em virtude de uma fraqueza, diferentemente de Kundry, cuja lealdade é volúvel. A angústia destes dois personagens liga-se à lealdade e ao remorso.
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Quanto a Titurel, a origem de sua angústia está na própria obra em que se empenha: comprometeu-se a levar a cabo um trabalho que se estenderia para além de sua vida, e confiou a sua continuidade a seu filho Amfortas. Entretanto, a queda deste e a aproximação da morte põe em risco a continuidade deste mesmo trabalho. A angústia do Líder de Monsalvat também se coloca no plano da lealdade, embora não tenha nem dúvidas em relação a quem deve servir nem traído a confiança nele depositada: ela se põe, antes, na impotência de impedir, por si só, que todo o trabalho que se comprometeu a realizar venha a se deteriorar. Num certo sentido, mesmo ele está longe da atitude de pleno desapego havida, tanto no pensamento hinduísta como no budista, como a meta a ser atingida: a ação sem a preocupação pelos resultados comparece tanto na exortação de Krishna a Árjuna no campo de Kurukshetra (Baghavad-Gita) como na visão budista da eliminação da dor no momento em que se elimina o desejo.
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Mas qual o papel do Jardim das Delícias, nome que se toma do tríptico do início da Renascença pintado por Hieronymus Bosch, justamente pela sua ligação estreita com a temática do II Ato do drama que está sendo comentado? É, justamente, distrair das angústias. Quantos buscam tornar o mundo um lugar de permanente fruição, de permanente deleite para os sentidos, desprezam o simples fato de alguém se angustiar, seja por que motivo for - todos os motivos para a angústia parecem fúteis - e correm para aquilo que lhes pareça ofertar felicidade, ainda que por alguns poucos instantes. O agradável passa a ser a medida do Bom, aquilo que oferte uma justificativa à decisão que se queira tomar passa a ser a medida do Verdadeiro.
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O fazer da fruição permanente um objetivo de vida implica, necessariamente, identificar o Mal a tudo o que represente um obstáculo à realização dos próprios desejos. Não se colocam aqui somente os exemplos corriqueiros de estroinices, mas também atitudes mentais, como os sectarismos de todos os tipos, que definem os "amigos", que são os que apresentariam utilidade na aproximação do ente desejante ao objeto desejado, e os "inimigos", que são os que não apresentariam utilidade e seriam, mesmo, obstáculos, e só serviriam para serem removidos. É um dado interessante trazido por Claude Lévi-Strauss (http://www.monsalvat.no/lstrauss.htm) este da dualidade: com efeito, há dois extremos opostos, no caso, que são o reino dos Cavaleiros do Graal, que tem à testa Titurel, e o Jardim das Delícias, que Klingsor comanda.
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Daí por que é sintomático que Kundry, justamente no momento em que se encontra sob o poder de Klingsor, reprove a Parsifal a compaixão pelo pecador Amfortas: ele é culpado pelo seu fracasso, seja castigado! Ele não tem utilidade para realizar a nossa felicidade, não nos proporciona prazer, é, pois, inimigo, digno de seu destino e de tudo o que puder representar sofrimento e destruição! Pode-se verificar, aqui, algo mais revelador de toda a essência do vício a que Adam Smith atribuía a capacidade de produzir o progresso do gênero humano - o egoísmo -? Algo mais revelador do tratamento da compaixão como a expressão mais típica da fraqueza humana, como a pavimentadora do "fracasso"? "O princípio do egoísmo e a admissão do sucesso econômico ao nível dos acontecimentos sociais (que dariam os elementos da competição capitalista) indicam a perspectiva sociológica que conduz à explicação teórica do valor-trabalho, nas implicações da divisão da riqueza por ele criada. O destaque do egoísmo como móvel da atividade econômica seria então um ponto fundamental da compreensão das motivações do esforço humano no sentido da produção de riquezas, em face dos princípios teóricos do liberalismo. [...] Correspondendo à idéia de egoísmo, porém, desenvolvia-se também a de harmonia social, procurando conciliar a satisfação de cada um com a felicidade de todos. Daí o princípio filosófico de que 'a liberdade de cada um termina onde começa a liberdade alheia', cujas implicações políticas são conhecidas no liberalismo e cujo correspondente econômico estaria na liberdade de iniciativa" [SOUZA, Washington Peluso Albino de. Direito Econômico e economia politica. Belo Horizonte: Prisma, 1970, v. 1, p. 98]. Com efeito, a plena glorificação da afirmação pessoal, do ego, limitado somente por outros egos...
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Entretanto, Parsifal, o Tolo Inocente, é iluminado, é tornado sábio pela compaixão. Como? O "tolo inocente"? Por que logo o "tolo", se a grande virtude enaltecida para vencer a luta pela sobrevivência é a esperteza? Por que logo a "inocência", se somente com a malícia podemos nos precaver contra nossos inimigos? Porque a compaixão implica o conhecimento da situação do Outro, o sofrimento com o Outro (a palavra alemã é, literalmente, Mitleid - dor com), e é precisamente por se superar a concepção do Outro como uma simples negação da satisfação dos nossos desejos, por se superar a concepção do Outro como Não-Eu que se superam os limites do saber e o "tolo inocente", sem ser governado pelo simples gosto, procurará conhecer os dados independentemente de eles o agradarem ou não.
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Budismo puro, com certeza, indo diretamente contra o pensamento de Arthur Gobineau (Essai sur l'inegalité des races humaines. Paris: Firmin-Didot, 1940, v. 1, p. 443), que via em Siddartha Gautama um exemplo de degeneração, por ser um Príncipe que decidiu abrir mão de todos os prazeres a que sua condição privilegiada lhe dava direito para viver em meio à Plebe. Mas, além do Budismo, põe-se também a própria questão da busca do conhecimento sem a aposição de rótulos que impeçam a sua apreensão, com o que a metáfora passa, mesmo, a trazer a questão da necessária humildade do cientista diante do objeto, do julgador diante da prova, de qualquer intérprete diante do objeto interpretado, seja ele qual for. E, por outro lado, a partir da própria ideia de renúncia presente no Budismo e retrabalhada no drama sob comentário - abstração feita da polêmica que se trava acerca do próprio egoísmo de Wagner -, tem-se também presente a questão das renúncias que a própria sobrevivência da espécie humana coloca, e o ingresso das ideias de Igualdade e Fraternidade - tão antagônicas ao espírito do Liberalismo puro, fundado que era no espontâneo equilíbrio dos egoísmos -.
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Por outro lado, a própria comodidade da dissolução no rebanho, tão enaltecida nas experiências totalitárias de todos os matizes (Nazismo, Stalinismo, Fascismo etc.), vem a ser também negada, dado que Parsifal não vem a atingir a iluminação em virtude de uma veneração ou de se submeter à autoridade de um mestre - Gurnemanz, no Primeiro Ato, tenta, mais do que prepará-lo, moldá-lo à sua imagem e semelhança, e é por isto que não consegue aceitar a perplexidade do herói diante do quadro que se desenrola à sua frente e vem a expulsá-lo -, mas por seu próprio mérito de se haver feito capaz de compreender o Outro (Amfortas) como a si mesmo.
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A capacidade de compreender o Outro como a si mesmo, num certo sentido, evoca a famosa sentença do Nazareno - "Ama o próximo como a ti mesmo" -, e também traz à balha um outro personagem de grande significação na literatura do século XIX: Aliócha Karamazov. Com efeito, dentre os filhos do libertino Fiódor, é a ele que cabe a qualificação de Tolo Inocente, protegido, inclusive, contra a tentativa que faz Rakitin de o corromper, para “contemplar ‘a ignomínia do justo’ e a ‘queda’ provável de Aliócha, ‘de santo tornado em pecador’” (Dostoiévski, Fiódor. Os irmãos Karamazov. Trad. Natália Nunes e Oscar Mendes. São Paulo: Circulo do Livro, s/d, p. 310), levando-o à casa de Grushenhka. Não é um indivíduo selvagem, porém de coração generoso, como seu meio-irmão Dmitri, nem uma alma torturada com o conhecimento da própria impotência como seu irmão Ivan, o urdidor da célebre passagem do Grande Inquisidor que vem a condenar o próprio Cristo quando este retorna à Terra. Contudo, diferentemente de Parsifal, que ao início é expulso por Gurnemanz (que interpreta como uma espécie de desrespeito o simples dado de não compreender através dos olhos dele, Gurnemanz, o que se passa diante de si), é Aliócha um discípulo fiel e submisso do Sacerdote Zózima - e talvez seja isto que o salve da destruição que se vem a abater sobre um outro "Tolo Inocente" dostoievskiano, posto sozinho com sua ilimitada compaixão em meio a um mundo de egoísmos e intrigas, o Príncipe Liev Míchkin, que se distingue de todos "pela simplicidade nobre e pela credulidade infinita" (O idiota. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 630-631) -. Parsifal, pois, não é um mero prolongamento de Gurnemanz, embora este, no III Ato, efetivamente venha a prepará-lo para o papel que desempenhará ao final, de responsável pela condução dos destinos da Confraria de Monsalvat, embora ali tenha chegado sem desejar o poder, ao passo que Aliócha, num certo sentido, é um prolongamento de Zózima. Para Wagner, o mundo é de Parsifal, enquanto, para Dostoievsky, o mundo tem de ser de Aliócha. Um tem a certeza de que a Redenção do Mundo vem, ao passo que o outro, mesmo não tendo tal certeza, deseja que ela venha. De qualquer sorte, ambos destinam o mundo - para a própria salvação deste - aos Tolos Inocentes.
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Musicalmente, é interessante o modo como estes temas vêm a ser tratados. A angústia de Amfortas, além de ter um tema próprio, vem associada com os de Kundry e da Magia, lutando com os do Graal, da Ceia, da Chamada ao Salvador, da Fé e da Lança. Derrick Everett, a este respeito, observa que o tema de Amfortas, em si mesmo, é derivado do tema da Ceia, baseado, entretanto, numa tríade menor (http://www.monsalvat.no/motif05.htm). Para que se tenha, musicalmente, uma idéia do que representa para Titurel a queda de Amfortas, basta recordar que o tema a ele associado, entoado por Gurnemanz, deriva, qual salientado por Everett (http://www.monsalvat.no/motif34p.htm), do tema da Fé, e é introduzido em dó bemol maior - enarmonicamente, correspondente ao si maior da Magia da Sexta-Feira Santa que aparece no III Ato -. É, pois, uma angústia que não tem raiz na auto-piedade, mas sim na consciência da própria condição efêmera, como ser humano, e na necessidade de ter continuidade uma obra cujo início lhe foi confiado. Daí se compreende que, apesar do sofrimento do prório filho, a voz de Titurel lhe ordena que cumpra o sagrado ofício, descobrindo a Taça do Graal, sublinhado pelo tema deste (Lavignac, Albert. Viaje artístico a Bayreuth. Trad. M. Vidal de La Rivière. Buenos Aires: Editorial Albatros, 1946, p. 345). A angústia de Kundry, além do seu tema descendente, que reflete sua gargalhada desesperada, em rápidas figuras rítmicas, estendendo-se por cinco oitavas (inicia-se no re 5 para terminar no fa#1), vem na associação freqüente com os temas da Magia e de Klingsor (que vem a ser cantado por este personagem, no II Ato, quando refere a mutilação que o torna imune à selvagem criatura), ao mesmo tempo em que soam, a lhe refletir o dilema, os temas da Chamada ao Salvador (que recorda muito um dos temas que aparecem no Coro dos Peregrinos, do Tannhäuser). O hedonismo vem simbolizado sobretudo pela valsa das Raparigas-Flores, entoada no II Ato, curiosamente, na mesma tonalidade que o tema da Ceia, lá bemol maior - justamente para apontar o caráter inverso da exaltação da Renúncia na Ceia -. O sol sustenido menor - enarmonicamente, lá bemol menor - comparece no tema do sofrimento de Amfortas. Novamente, a questão das oposições a que se referiu Levi-Strauss: o problema se torna, em termos mitológicos, o estabelecimento do equilíbrio entre os mundos opostos, o da rapidez (a música no II Ato é, freqüentemente, salvo quando retrata as tentativas de sedução a Parsifal, mais acelerada do que no I e no III) e o da lentidão, tendente mesmo ao estático, e, para isto - continua o antropólogo -, alguém deveria, provavelmente, entrar e sair de um dos mundos e ser excluído e reingressar no outro, como o faz o herói deste drama, alguém que, simultaneamente, deve saber e não saber, que vem a obter a iluminação pela compaixão, mais do que por qualquer ato de comunicação - a iluminação vinda por dentro e não por fora -. Há, ainda, a oposição entre passagens mais cromáticas relacionadas com Klingsor e passagens mais tonais, relacionadas com os Cavaleiros do Graal. Entretanto, pareceria uma obviedade acaciana a recordação de que elas formam uma totalidade, que é o Parsifal.
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E o que se quer dizer, com tudo isto? Simplesmente que a atualidade do Parsifal, em todos os aspectos, está nas suas múltiplas possibilidades de se explorar a superação dos limites da lógica binária que tem dificultado ao máximo a compreensão do mundo que nos rodeia e, mais do que isto, de nós mesmos. Vale aqui trazer a crítica formulada por Claude Lévi-Strauss a Michel Leiris em relação às ressalvas por este opostas ao drama que está sendo comentado: "a percepção forçada de um sentido cristão para o ciclo do Graal não é de ontem; remonta ao início do século XIII com Robert de Boron. Para o etnólogo, que tem a obrigação de possuir algumas noções de história das religiões, essa tradição é eminentemente respeitável. Em vez de irritar-se, convém compreendê-la e situar a versão inovadora de Wagner entre todas as que se sucederam, desde Chrétien de Troyes. Mas, sobretudo, ao ler estas páginas de Leiris, não se tem a impressão de que ele tenha, ao longo da representação, sentido nenhuma impressão musical. Pessoalmente, quando sou invadido pela música de Parsifal, paro de fazer perguntas" (Olhar, escutar, ler. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 90).

sábado, 4 de abril de 2009

Beethoven, um desafio





Não constitui tarefa simples a elaboração de um trabalho sobre Ludwig van Beethoven que possa ser considerado intelectualmente aceitável. Com efeito, buscar dados extramusicais para a compreensão de suas peças é tido como um comportamento próprio de quem pretenda ouvir mais a si mesmo do que ao próprio compositor, porquanto a música seria uma linguagem em si mesma e a intenção de Beethoven – diferentemente de Richard Wagner, cuja música não pode ser compreendida fora da função teatral que desempenha, e de Franz Liszt, cuja música tem uma referência literária explícita – é, efetivamente, produzir música, a denominada música pura. Entretanto, Beethoven também produziu música dramática – veja-se, neste sentido, a ópera Fidelio e mesmo o Oratório Cristo no Monte das Oliveiras – e música programática – caso da Sinfonia nº 6, em Fa Maior, explicitamente literária, intitulada “Pastoral”, cujos movimentos evocam situações experimentadas por quem visita o campo -. Colocar Beethoven como mero fruto de sua época é, outrossim, ignorar que, se os ouvintes se assustavam com sua música, era justamente porque não se tratava de obsequiar o contexto cultural em que compunha, muito embora lançasse mão do conjunto de conhecimentos até então acumulado. O que é conhecido não provoca medo, e Beethoven explorava, qual um desbravador, caminhos temidos pelos seus contemporâneos. Desvincular, outrossim, o Mestre do seu tempo é o mesmo que ignorar que ele não ficou imune à onda que varreu a Europa desde a Revolução Francesa – ele tinha 19 anos quando da Queda da Bastilha – e às próprias Guerras Napoleônicas – dedicará a Sinfonia nº 3, em Mi bemol Maior, ao Napoleão encarregado de consolidar a obra da Revolução Francesa e, ao identificar traição a tais ideais na auto-coroação como Imperador -. A surdez acabou com sua carreira de concertista e o fez, inclusive, como se pode ler no Testamento de Heiligenstadt, pensar em suicídio, mas, como disse Richard Wagner, “a medida que iba perdiendo contacto con el mundo exterior, miraba con mayor lucidez el mundo interior. A medida que va sabiendo como organizar su reino interior, impone con mayor seguridad sus exigencias al mundo exterior: pide a sus protectores que dejen de remunerar sus trabajos y que velen a cambio por que no tenga de preocuparse de nada y de este modo pueda trabajar unicamente para si mismo” [Beethoven (fragmento, 1870). In: http://www.archivowagner.net/32e.html, acessado em 8 de maio de 2003]. Pode-se classificar Beethoven como um clássico ou um romântico? Ele tem a mesma idade de Hegel, o grande nome do Idealismo alemão, é contemporâneo do Goethe que escreve o primeiro Fausto e do Schiller que escreve Os bandoleiros, e, como eles, será animado pelo espírito revolucionário em plena atmosfera de absolutismo monárquico. Não capitulará, entretanto, como Hegel, às exigências da bajulação para ascender aos cargos mais altos da burocracia universitária, não será, como Goethe, convertido à causa da aristocracia. Escolherá para tema literário da sua obra capital – a 9ª Sinfonia, em Re Menor – a Ode à Alegria, de Schiller. Ao invés das loas à vida germânica, superior à do Oriente e à da Grécia, porque nela “todos seriam livres”, de acordo com Hegel, ao invés do retrato da maior nobreza de espírito dos nobres de sangue encontrado em Goethe, o Presto infunde vida ao poema de Schiller, em que “o Amor se expande a milhões, com um beijo ao Mundo inteiro”. Música que brota do interior, e desafia os que pretendem reduzi-la a um simples produto da situação social do Mestre [BECERRA SCHMIDT, Gustavo. Lo así llamado Bello en Música. In: http://www.gbecerra.scd.cl/LoBello.htm, acessado em 8 de maio de 2003; ADORNO, Theodor Wiesengrund. Teoria estética. In: http://www.eina.edu/cat/ass/aic2/DI_DIl_DII_Iectures.pdf, acessado em 8 de maio de 2003]. Música que se estende até o Continente Americano, e que é do conhecimento do maior sinfonista deste, seu contemporâneo Padre José Maurício Nunes Garcia (http://www.geocities.com/Vienna/Strasse/8454/nunes.htm, acessado em 8 de maio de 2003; http://openlink.br.inter.net/jmilito/classico.htm, acessado em 8 de maio de 2003). A surdez, aqui, se coloca como o catalisador, para este Sacerdote, daquilo que durante a Idade Média se convencionou chamar “contemptus mundi”. Pode-se encontrar fundamentação mais que suficiente para o contemptus mundi nesta passagem de Santo Agostinho: “pela propensão imoderada para os bens inferiores, embora sejam bons, se abandonam outros melhores e mais elevados, ou seja, a Vós, meu Deus, à vossa verdade e à vossa lei” (Confissões. Trad. J. Oliveira Santos, S.J. & A. Ambrósio de Pina, S. J.. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 69). Mostra-se interessante, no sentido de captar a compreensão wagneriana do contemptus mundi, a seguinte passagem de Charles Baudelaire sobre a abertura de Tannhäuser: “há pouco estávamos nas profundezas da terra (Vênus, como dissemos, habita próximo ao inferno), respirando uma atmosfera perfumada, mas sufocante, iluminada por uma luz rosa que não provinha do sol; éramos semelhantes ao próprio cavaleiro Tannhäuser, que, saturado de delícias enervantes, aspira ao sofrimento! Clamor sublime que todos os críticos jurados admiravam em Corneille, mas que nenhum desejará ver, talvez, em Wagner” (Richard Wagner e Tannhäuser em Paris. Trad. Plínio Augusto Coelho & Heitor Ferreira da Costa. São Paulo/ Rio de Janeiro: Primeira Linha/Contracapa, 1999, p. 54). A mulher aparece como a grande tentadora porque, ao lado da santa função de nutriz, pode representar um elo mais forte do homem à matéria, por lhe proporcionar o pecaminoso prazer corporal. Santo Tomás de Aquino, de acordo com Umberto Eco, “desaconselha o uso litúrgico da música instrumental. Os instrumentos devem ser evitados justamente porque provocam um deleite de tal forma intenso que desviam o ânimo do fiel da primitiva situação da música sacra, que é realizada pelo canto” (Arte e beleza na estética medieval. Trad. Mário Sabino Filho. Rio de Janeiro: Globo, 1989, p. 21; S. th. II-II, 91, 2). Isto pode ser visto já em Santo Agostinho: “inclino-me a aprovar o costume de cantar na Igreja, para que, pelos deleites do ouvido, o espírito, demasiado fraco, se eleve até aos afetos de piedade. Quando, às vezes, a música me sensibiliza mais do que as letras que se cantam, confesso com dor que pequei” (op. cit. p. 293). Santo Tomás, ainda, cita e comenta Santo Isidoro de Sevilha (http://www.accio.com.br/Nazare/1946/st-3sn25.htm, acessado em 10 de dezembro de 2002):

“Santo Isidoro diz que
‘a vida contemplativa, renunciando ao mundo, deleita-se de viver somente em Deus’.

Ora, viver somente para Deus exige a contemplação somente de Deus. Portanto, não é toda operação da inteligência que pertence à vida contemplativa.”

São Bernardo de Clairvaux ia ainda mais longe na condenação do prazer sensorial como manifestação sincera do contemptus mundi, como se pode ver deste trecho citado por Erwin Panofsky: “mas nós que, por amor ao Cristo, condenamos como excremento tudo o que brilha com beleza, encanta o ouvido, delicia pela fragrância, favorece o paladar, agrada ao toque - devoção a quem, pergunto, pretendemos incitar por essas mesmas coisas?” (Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 165-166). Além da tradicional posição do clero em torno do contemptus mundi, havia um objetivo de retorno às raízes do Cristianismo, como salientou Édouard Jeauneau: “a vocação de Bernardo foi de pregar o regresso à simplicidade do ideal evangélico. No domínio da arte sagrada, preconiza o despojamento. No domínio do saber, tenta conduzir o pensamento cristão ao seu objecto primeiro, que é o Cristo: ‘a minha filosofia’, diz ele, ‘é conhecer Jesus e Jesus crucificado’” [A filosofia medieval. Trad. João Afonso dos Santos. Lisboa: Ed. 70, 1986, p. 60]. Guardemos este segundo aspecto da condenação de S. Bernardo de Clairvaux ao prazer corporal, inclusive estético, para quando formos tratar dos fundamentos da autoridade durante a Idade Média. Por ora, retenhamos tão-somente o contemptus mundi. Dante Allighieri, na Divina Comédia, Paraíso, Canto XXI, na tradução de João Ziller, estampa a crítica ao luxo clerical, comparando-o com a simplicidade do cristianismo primitivo, numa linha similar à de S. Bernardo de Clairvaux, que, aliás, será o seu último guia no Paraíso: “Vieram Pedro e Paulo, de imortal/ Espírito repletos, magros, pobres,/se alimentando à mesa mais frugal./ Os pastores agora querem nobres/a os servir e guiar e caudatários!/ Quanto são graves, ó quanto são dobres!”. É interessante, também, observar esta passagem d’ A demanda do Santo Graal sobre o contepmtus mundi: “os sinais e os significados do Santo Graal não aparecem ao pecador nem a quem está envolvido nos prazeres do mundo”. Só que o desprezo pelo Mundo não é necessariamente desprezo pela Humanidade. Primeiro, porque mesmo não compondo para simplesmente deleitar os sentidos da audiência, sua música, efetivamente, produz deleite. Aliás, o prazer estético é o grande desafio para quem pretenda reduzir as reações humanas a fenômenos biológicos. O caráter convencional do Belo também não constitui explicação suficiente: se assim fosse, Beethoven procuraria fazer concessões ao gosto da época, o que não é o caso. Vontade de transgredir as regras da estética? Se assim fosse, não procuraria Beethoven conhecê-las a fundo, explorando as lições dos mestres Mozart e Haydn, principalmente, até à exaustão. O fato é que, de qualquer sorte, Beethoven, mesmo não escrevendo música para deleitar os ouvintes, mesmo escrevendo música como arte e não como produto de consumo, sua música é apreciada com prazer. Segundo, porque, ao contrário de Timon, o azedo personagem de Shakespeare que, após ser maltratado pelos atenienses, enche-se de tal ódio pela humanidade que aos seus compatriotas, cercados por Alcebíades, oferece como único refúgio uma árvore para se enforcarem, Beethoven, à humanidade que enaltece a mediocridade em detrimento do gênio, à humanidade que valoriza as pessoas em função daquilo que elas têm a oferecer, oferta, entretanto, um Hino de Amor e Fraternidade Universal, consubstanciado na Nona Sinfonia. Ele não promete a Felicidade, não tranqüiliza o ouvinte, mas simplesmente ensina a este a possibilidade de amar a Humanidade ainda que esta não lhe corresponda. Apesar da ferocidade aparente, Beethoven ama os seres humanos. E o próprio Mundo, para ele, não é desprezível, mas sim o consagrar-se ao que hoje denominaríamos consumismo: o amor à natureza expresso na 6ª Sinfonia, na Sonata para Violino e Piano intitulada A primavera, prova isto. E tampouco, apesar de morrer solteiro, é um asceta que faz voto de castidade: Luís Gregorich recorda que “a pesar de que Beethoven concibió en vários momentos de su vida la Idea de casarse, las candidatas invariablemente terminaban casandose con otros. Siempre rodeado por admiradoras, no parece haber acumulado muchas amantes o novias verdaderas. Teresa Malfatti lo rechazó. Giullietta Guicciardi se casó con el Conde Gallemberg. Bettina Brentano casó con Achim von Arnim. Antonia Brentano (la probable ‘amada inmortal’) y Ana María Streicher ya eran casadas. Y así sucesivamente. Tuvo algunas hadas protectoras, que lo rodearon de afecto maternal. Y con seguridad, relaciones con prostitutas, practicadas con sigilo y culpa” [El mundo de Beethoven. In: http://colon.is.com.ar/revista/rev40/beethoven.html, acessado em 8 de maio de 2003]
Mas não se pense que a surdez se mostraria suficiente para explicar Beethoven. Se assim fosse, Bedrich Smetana teria a mesma estatura musical. Entretanto, mais não foi este do que um grande compositor que iniciou o movimento do nacionalismo romântico na Boêmia, destacando-se por seus melodiosos e imponentes poemas sinfônicos do ciclo “Minha Terra”, pela ópera “A noiva vendida” e pela sua música de câmara, mas sem trazer, em si, qualquer novo idioma musical. Sua obra é documento de uma época e de um lugar, embora de muito valor – não é um fruto de meras concessões ao gosto do público, qual ocorria, por exemplo, com um Meyerbeer, um Spontini ou um Offenbach – mas não assume, por alguma misteriosa razão, a dimensão universal que a obra de Beethoven vem a alcançar. A surdez foi fatal para Smetana, ao passo que, para Beethoven, foi a abertura para dentro de si próprio. Muito mais a Beethoven que a Smetana se aplica a sentença de Walter Benjamin: “el valor único de la auténtica obra artística se funda en el ritual en el que tuvo su primer y original valor útil” [“Discursos interrumpidos” en “La obra de arte en la época de su reproductibilidad técnica. In: http://www.catedras.fsoc.uba.ar/rubinich/abenjam.html, acessado em 8 de maio de 2003]. Wagner foi feliz ao comparar a surdez de Beethoven à cegueira de Tirésias: “Mas sabemos quién es ese vidente que de pronto ha quedado ciego -se trata de Tiresias, para quien se ha velado el mundo de las apariencias y que, a cambio, percibe ahora con su mirada interior el fundamento de toda apariencia-. A él se parece ahora el músico que ha quedado sordo: ajeno ya a los fastidiosos ruidos de la vida, no oye sino sus armonías interiores, y desde lo más profundo de su alma aún se dirige a ese mundo, que para él permanece sumido en el silencio. De este modo el genio, liberado del no yo, se concentra -y se limita a su yo-. Y para quien mirase a Beethoven con los ojos de Tiresias, ¡qué milagro!, ¡que revelación! ¡Un mundo, viviendo entre los hombres! ¡El mundo en sí dentro de un hombre que vive!.” [op. cit.]. Sim, nem todo cego passa a ser um Tirésias, cego com os olhos físicos, enxergando o que os que vêem não vêem, nem todo surdo passa a ser um Beethoven. A diferença, apenas, é que sobre a existência de Tirésias não se tem comprovação - é um personagem mitológico -, enquanto Beethoven é um homem de carne e osso. Entretanto, para falar dele, é necessário ser mais que artista, mais que filósofo, mais que poeta: ele é um mundo, como disse Richard Wagner. Não cabe, entretanto, lançar a Beethoven o rótulo simplista de esquizofrênico, nem o de autista. Como salientam Otto Maria Carpeaux e Antônio Houaiss, “teve notável êxito material e chegou a ditar preços para os seus editores. Mas, sobretudo, foram mal compreendidos os efeitos da doença. Até 1814, a surdez não foi total, permitindo a elaboração de numerosas obras-primas eufônicas; depois dessa data, foi a própria surdez que abriu ao compositor as portas de uma nova arte, toda abstrata. A grandeza de Beethoven não foi, pela surdez, prejudicada, e sua vida não se resume numa luta heróica contra a doença” [Beethoven. In: PLURES. Enciclopédia Mirador Internacional. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica do Brasil, 1975, v. 4, p. 1.248].
Mas o que dizer deste homem que, em plena Europa do Congresso de Viena, vocifera, musicalmente, literalmente sem dar ouvidos a quem quer que seja, a possibilidade de outro mundo? A Nona Sinfonia é de 1823 e alegoriza como de um tema aparentemente informe do Primeiro Movimento - o Caos, na legítima expressão grega - se faz o Cosmos, como as forças que compõem o Cosmos orquestral se agitam no Scherzo para se recolherem solenemente no Terceiro e, no Quarto, virem a se encarnar nos cantores, a esta altura convertidos, eles mesmos, em instrumentos da orquestra! O Homem não pode nunca ser considerado um simples meio, mas sempre um fim em si mesmo? A máxima kantiana sofre, aqui, uma exceção: ele é um simples veículo para a passagem da mensagem posta na Sinfonia.
Bernard Rose, no seu filme Minha Amada Imortal (EUA - 1995), lança mão de um recurso, a um só tempo, banal e sublime, de apelo fácil e, ao mesmo tempo, passível de uma complexa interpretação de cunho psicológico, bem ao gosto do intelectual estereotipado: o menino Beethoven, ao som do Quarto Movimento da Nona Sinfonia, fugindo aos arroubos de fúria do pai Johann, refugia-se num riacho e se deita ali nas águas calmas, que refletem a noite estrelada e se confunde com o reflexo das constelações. No campo do apelo fácil, a obviedade do caráter cosmogônico da Nona Sinfonia permitiria ao crítico uma leitura malévola. Já no campo da interpretação de cunho psicológico, quando o crítico quisesse se sentir mais inteligente, a fraqueza extrema do menino resolvendo voltar à proteção do seio materno - o Ersatz seria o riacho - se confunde com o momento de glória em que ele se torna um astro em meio aos corpos celestes. Esta seria, ao ver do crítico, a leitura benévola. Mas, que importa isto, quando o que se tem, diante dos ouvidos, é a Nona Sinfonia? Ou melhor, quando é a Nona Sinfonia que nos penetra os ouvidos e nos dissolve em nossa individualidade, passando a nos tornar parte dela mesma? Dir-se-á que a marca do gênio estaria na demonstração da virtuosidade, do domínio das dificuldades e da acessibilidade das mensagens somente a um grupo de iniciados. Entretanto, Delacroix já nos trouxe precisamente a mensagem oposta: no quadro Ovídio entre os citas, pintado em 1859, retrata os últimos anos da vida de Ovídio, exilado de Roma pelo auto-denominado Augusto. Os bárbaros citas trataram-no, entretanto, melhor que os civilizados romanos, adotando-o e procurando fazer com que se sentisse bem. Basta reparar na solicitude com que o nômade se dirige ao poeta, bem na parte central da figura, chamando a atenção para um aspecto que surpreende a quem conheça a fama daqueles antepassados dos russos, viventes às margens do Mar Negro, sobretudo pelo que deles narra Heródoto. Os temidos citas, aqui, mostram-se capazes da grandeza, de estarem acima da pequenez romana, voltada exclusivamente à satisfação da febre de conquista. Este quadro, ainda, é uma ilha de suavidade em meio aos vulcões plantados na paisagem pictórica de Delacroix. Em meio a quadros de combates e caçadas, domas de cavalos, recordações de viagem, aqui se tem um poema lírico, trazendo a nostalgia que o homem civilizado tem da natureza, tema tipicamente romântico a que certo psicologismo identificaria, com toda a certeza, com uma espécie de nostalgia do seio materno. Mostra, entretanto, a proximidade, a cumplicidade que existe entre o homem de gênio e o homem simples - Ovídio é alimentado com leite de égua, base da dieta dos citas -, ambos incompatíveis com os medíocres, o primeiro pela prova viva que das limitações destes ele constitui, o segundo, pelo desprezo que os afetados têm pela autenticidade. Os medíocres precisam sempre adular e ser adulados e, conseqüentemente, precisam sempre livrar-se daquilo que os possa lembrar de que os elogios de que pensam ser credores nada mais são do que uma mentira risonha, de que eles mesmos não constituem o supra-sumo do gênero humano. De outra parte, um menino e um lobo dirigem o olhar do espectador para o poeta, a exprimir que o gênio só é acessível pela pureza e fidelidade. Algo que se encontra na análise feita por Mario Roso de Luna de Os Mestres Cantores de Nuremberg: "enterado Beckmesser de la insensata pretensión de Walther y rabioso de celos, ejerce con él el cargo de censor en su canto preliminar a la presencia de los maestros, a quienes hace luego escandalizar ante la enormidad de faltas contra la tablatura, naturalmente cometidas por aquel novicio, que tanto sabía de amor e tan poco de achaques literario-musicales. Sólo Hans Sachs, el maravilloso Maestro de maestros, venerado por todos, ha creído advertir, tras el sincero canto de amor entonado por el caballero, algo que, no obstante salirse por completo del rígido canon, encierra, a su juicio, desconocidos elementos de belleza, por la noble espontaneidad de aquel, insinuados, y en los que late viva la siempre fresca inspiración del pueblo, siempre querida aherrojar por la rutina pedantesca de las reglas, 'de la letra que mata', diría el Evangelio" [Wagner, mitólogo y ocultista. Buenos Aires: Glem, 1958, p. 381]. Mensagem similar à que se contém no arpejo que abre o Quinto Movimento da 6ª Sinfonia em Fa Maior de Beethoven. As notas do acorde de Fa Maior, desdobrado, em movimento descendente, geram o tema principal do rondó final – la, fa, do, la, fa -, expressando os sentimentos de gratidão e amor após a tempestade. Nele viu Wagner a promessa do Cristo ao bom ladrão: “estarás hoje comigo no Paraíso” [op. cit.]. Simplicidade que, entretanto, não significa ausência de dificuldade técnica: a interpretação de Beethoven deve ser vista como um sacerdócio. Quem venha a executar-lhe as obras com fidelidade deve, necessariamente, imbuir-se desta noção e, para isto, não é a qualquer um dado trazer a mensagem a lume.
Assim como o Aleijadinho, superando a deficiência física que, a rigor, poderia inabilitá-lo ao exercício do mister a que se consagrara – pouco importando, no caso, se ele comandava o atelier ou se executava pessoalmente, já que o toque do mestre era sempre pessoal -, possibilitando o impossível e realizando o irrealizável, a um só tempo, um dado da cultura mineira do século XVIII e um dado que transcende as Alterosas, como assinala Washington Peluso Albino de Souza – “temos, pois, igualmente trazidos para a figura de Aleijadinho, além do que a realidade ofereça em termos de Antônio Francisco Lisboa, também os dados que ferem as normas institucionais da sociedade da época e que agridem o raciocínio lógico, tais como o mulato artesão criando obras que lhe exigiriam um preparo cultural acima do que todas as informações da realidade possam satisfazer; seja o latim das cartelas dos profetas, dos medalhões e dos altares, das fitas dos frontispícios, dados por muitos como poesia do melhor quilate; sejam as proporções de suas peças, nem sempre coincidentes com as usuais, o que havia de contrariar as exigências corporativas artesanais; sejam as ‘deformações’ que chocaram os visitantes europeus imbuídos de conceitos estéticos tradicionais, seja a composição das igrejas, afastando-se dos modelos aprovados pela metrópole, e assim consideradas revolucionárias, num momento de eclosão dos ideais de liberdade da região, teremos sempre a presença da possibilitação do impossível, ainda mais sublimada na tônica da execução manual sem mãos” [Minas do ouro e do barroco. Belo Horizonte: Barlavento, 2000, p. 207] –, o seu contemporâneo Beethoven fala da unidade do gênero humano a uma Europa que vê as cabeças coroadas derrotarem aquele que, de propagador da Revolução Francesa, resolvera converter-se, ele mesmo, em cabeça coroada, que vê o retorno do Absolutismo, num clima que seria narrado por Alexandre Dumas em O Conde de Monte Cristo, que vê o retorno dos privilégios baseados no nascimento. A Nona Sinfonia será, como tantas outras obras, executada pela primeira vez na Áustria de Clemente Metternich, com uma mensagem bem diversa daquela que interessava à Corte Austríaca e a seu tremendo Chanceler. Afinal, não teria sido em nome da Igualdade, da Fraternidade e da Liberdade que Maria Antonieta, filha da Imperatriz Maria Teresa, fora decapitada? Mas o compositor de Fidelio é também o da Vitória de Wellington, o mesmo que escreve a Nona Sinfonia dedica os quartetos de cordas op. 59 ao Conde Razumovsky, aproveitando, até mesmo, temas populares russos (no Scherzo do Quarteto em Mi menor, aparece um tema que seria, mais tarde, aproveitado por Mussorgsky na cena da coroação na ópera Boris Godunov). Mas estas contradições aparentes podem ser vistas na própria caracterização que Beethoven imprimiu à forma-sonata: a partir da bitemática clássica, na exposição os temas A e B apresentam uma contraste nítido entre si, em que um tem caráter afirmativo e o outro caráter de súplica, como se verifica, por exemplo, no primeiro movimento da Sonata em Fa Menor, conhecida como Appassionata. O tema descendente, violento, afirmativo, é seguido por um tema ascendente, aparentado a ele em termos de desenho melódico, implorante, sem sombra de dúvidas. Este contraste vai sendo acentuado no desenvolvimento, em que se verifica a ressurreição da concepção grega da interpretação teatral como reconstituição do combate - Baal mata a serpente Tiamat, Wotan e seus irmãos matam o Gigante Ymir, e deste combate nasce o Mundo -. Vão aparecendo, inclusive, reminiscências rítmicas da 5ª Sinfonia em Do Menor, tudo a, embora seguindo o esquema formal já consolidado por Mozart e Haydn, introduzir um elemento praticamente desconhecido na sonata clássica: a acentuação da tensão, a paixão, enfim, o adiamento do momento de repouso. O segundo movimento, formalmente estruturado como variações sobre um tema de poucas notas, tem um caráter de recolhimento religioso, melancólico, que recupera as forças para a batalha final, que irrompe com toda a violência no terceiro movimento. Tocando nos precursores de Wagner, voltando-se especificamente a Beethoven, disse Mário Roso de Luna: "en Beethoven, a la inversa, la idea no sucumbe jamás; por el contrario, es la forma que se muestra impotente, porque la idea desborda por ella hasta romperla. De aquí las formas nuevas de su segundo y tercero estilo. Fetis, en su biografía de los grandes músicos, ha mostrado una de las características más grandes del maestro, observando que lo que le distingue de los demás es la espontaneidad de los episodios, por los cuales suspende el interés que antes hiciera nacer para sustituirle por otro tan vivo como inesperado. Este arte insuperable le es peculiar. Extraños ellos, en apariencia, al pensamiento primero, atraen desde luego la atención por su originalidad; en seguida, cuando el efecto causado por la tal sorpresa comienza a debilitarse, Beethoven sabe retrotraerlos a la unidad de su plan, haciendo así ver al fin que en el conjunto de su composición armónica la variedad depende de la unidad...Como Napoleón, Beethoven es ya algo inverosímil; se le tomaría a veces por un verdadero mito" [op. cit., p. 111-112].

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